Segunda, 20 Outubro 2025

Opinião | Antonio Mauricio Ferreira Netto
Engenheiro mecânico e de produção. Especialista em Planejamento e Gestão Pública; Transportes; Transportes Urbanos; Portos; Desenvolvimento Urbano e Políticas Públicas
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A modernização da Lei dos Portos (Lei 12.815/2013) e a busca por um novo instrumento legal que catalise a competitividade do país são necessidades inquestionáveis e quase unânimes.

Contudo, o Projeto de Lei PL 733/2025, que se candidata a ser esse instrumento modernizador, revela-se perigosamente limitado. Na legítima busca por eficiência operacional e atratividade para investidores privados, o projeto comete um erro estratégico fundamental: ele continua a tratar o porto como uma ilha autônoma, uma entidade global desconectada do corpo municipal e regional que a hospeda e do território econômico, social e ambiental que o sustenta.

Essa visão ignora a realidade concreta: a atividade portuária não ocupa um simples "espaço municipal", mas integra um sistema territorial complexo. É nesta escala ampliada – da bacia logística, socioambiental e econômica – que o futuro portuário deve ser repensado.

O território não é um pano de fundo inerte; é um ator dinâmico. Ele compreende:

- Bacia Logística: O porto é o nó central de uma rede que se estende por rodovias, ferrovias e hidrovias, impactando cidades satélites, zonas rurais e outros estados. Um congestionamento no porto gera um efeito dominó em todo o corredor de exportação.

- Bacia Socioambiental: Os impactos do porto – como a poeira de carvão ou efluentes – não respeitam fronteiras municipais. Eles afetam a qualidade do ar, os recursos hídricos e a saúde pública de uma região inteira.

- Bacia Econômica: O porto é um imã que atrai ou repele investimentos, define vocações industriais e modifica o preço da terra em um raio de dezenas de quilômetros.

Ignorar esta dimensão territorial é perpetuar a lógica do enclave e criar zonas de sacrifício, onde os benefícios da atividade portuária são privatizados, mas seus custos são territorializados de forma difusa e injusta.

A relação porto-cidade" é uma ficção que mascara uma sobreposição de jurisdição onde a atividade portuária, de poder e escala global, impõe impactos assimétricos ao território local. A inversão para "cidade/região-porto", utilizada recentemente por alguns, é um primeiro passo, mas ainda insuficiente. É preciso evoluir para um conceito que melhor exprima a questão, no caso o de "Território-Porto".

O porto é o nó central de uma rede que se estende por rodovias, ferrovias e hidrovias, criando uma bacia de influência que abrange múltiplos municípios, ecossistemas compartilhados e dinâmicas econômicas regionais. Seus impactos – congestionamentos, poluição, barreiras físicas, outros – não respeitam fronteiras municipais, mas se territorializam.

A Forma Visível e Perceptível do Conflito ("Gestalt do Conflito") e a Violação da Norma Territorial

Esta desconexão manifesta-se em uma forma visível e perceptível do conflito "Gestalt do Conflito": o porto é uma "figura" que não se integra ao "fundo" da cidade e do território. Essa ruptura tem profundas raízes legais.

O PL 733/2025 consolida a assimetria ao invisibilizar o ente local, propondo, em tese, que os planos diretores municipais se submetam aos planos dos portos. Esta visão colide frontalmente com a primazia do direito local na regulação do território, um imperativo constitucional e legal:

1. Autonomia Municipal (Art. 30, CF): A Constituição Federal assegura aos municípios a competência para legislar sobre interesse local e ordenar o uso do solo.

2. Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001): Instrumentos como o Plano Diretor e o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) conferem controle legítimo ao município sobre empreendimentos de grande impacto.

3. Lei 12.815/2013: O Artigo 19 da vigente Lei dos Portos determina que a administração portuária deve respeitar o plano de desenvolvimento municipal.

4. Direito ao Meio Ambiente (Art. 225, CF): Garante o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, onde a norma local de proteção deve prevalecer quando a atividade econômica coloca em risco a saúde da população.

Ignorar esta hierarquia é violar o princípio constitucional da habitabilidade e da função social da cidade. O desrespeito à norma transforma o conflito em uma agressão ao território e à sua população.

O Imperativo da Inversão: Instrumentos para uma nova forma de relação harmoniosa e integrada "Gestalt da Coexistência"

A verdadeira modernização portuária do século XXI mede-se não apenas pela produtividade dos guindastes, mas pela qualidade ambiental, pela fluidez da mobilidade regional, pela não fragmentação e ruptura do espaço urbano e eliminação de sua lisibilidade e até pela capacidade de um cidadão acessar a orla marítima. Para transpor a lógica do enclave para a do território-integrado, é necessário um novo arcabouço legal baseado na co-gestão e na compensação justa.

1. Supremacia do Ordenamento Territorial: O Plano Diretor Municipal e os instrumentos de planejamento metropolitano e estadual devem ser os documentos mestres para o zoneamento das áreas portuárias. A expansão portuária não pode estrangular o desenvolvimento urbano e regional, devendo garantir o acesso público às frentes d'água (waterfronts) e a conectividade do tecido urbano.

2. Novos Instrumentos de Gestão e Compensação Territorial:

2.1 Fundo de Compensação Territorial: Alimentado por uma Contribuição de Impacto Logístico sobre a movimentação de carga, este fundo seria gerido de forma paritária e aplicado em:

  • Mitigações Ambientais Regionais: Recuperação de bacias hidrográficas e monitoramento da qualidade do ar em toda a área de influência.
  • Infraestrutura Metropolitana: Melhoria de rodovias estaduais, anéis viários e ferrovias de integração.
  • Programas de Saúde Pública: Atendimento às populações de municípios impactados pelos corredores de transporte.

2.2 Contratos de Concessão com Cláusulas de Integração:

  • Corredores de Servidão Pública: Garantia de passagens que reconectem a cidade à sua orla.
  • Investimento em Acessos: Cofinanciamento de vias alternativas pelo concessionário, evitando que o custo da modernização recaia apenas sobre o poder público.

3. Mudança na Governança: Do Diálogo para a Co-gestão:

  • 3.1 Conselhos de Desenvolvimento Territorial do Porto: Além da existência de um CAP deliberativo, defende-se a criação de conselhos com poder deliberativo e composição paritária, incluindo o porto, o município-sede, municípios do entorno, governo estadual e sociedade civil. Decisões sobre expansão, operações noturnas e aplicação de recursos do fundo passariam por este colegiado.
  • 3.2 Revisão do Mandato da ANTAQ: A agência reguladora deve ter seu mandato expandido para incluir obrigatoriamente a avaliação dos impactos territoriais e a promoção da integração portuária como parte de sua missão. A eficiência econômica deve ser equilibrada com indicadores de sustentabilidade urbana e qualidade de vida regional.

Conclusão: O Território como Ator

O processo decisório portuário, revendo seus diversos componentes e incluindo prioritariamente os estados e municípios em uma lógica territorial, contribuirá para a redução de riscos e externalidades. Trata-se de um esforço de engenharia institucional e social, onde a união de tecnologia, inteligência e participação constrói uma nova forma de relação harmoniosa e integrada – a "Gestalt da Coexistência".

Ao abraçar o "Território-Porto" como guia e metodologia de planejamento mais adequada, a sociedade pode construir uma realidade na qual o porto não seja um vizinho distante, mas o coração pulsante de um desenvolvimento regional integrado, produtivo e, acima de tudo, equitativo. O mar, então, deixa de ser uma barreira para se tornar o vínculo que une o desenvolvimento nacional à qualidade de vida no território.

Antonio Mauricio Ferreira Netto
Engenheiro mecânico e de produção. Especialista em Planejamento e Gestão Pública; Transportes; Transportes Urbanos; Portos; Desenvolvimento Urbano e Políticas Públicas
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