Domingo, 24 Novembro 2024

Nilson Mello* Jornalista e advogado, sócio diretor da Meta Consultoria e Comunicação e do Ferreira de Mello Advocacia.

No cenário nebuloso que o Brasil enfrenta em função da pandemia de Covid-19, algumas certezas vão se consolidando, todas com direta relação com a atividade portuária e o transporte marítimo. A primeira delas é que a crise econômica resultante será maior do que a de 2008, conforme já apontam organismos internacionais e autoridades monetárias mundo afora. A segunda é que países emergentes, como o Brasil, grande exportador de commodities, serão mais fortemente afetados, em decorrência da queda de demanda por matérias-primas, principalmente da China, onde a atividade econômica já sofreu redução de 6,8% do PIB no primeiro trimestre.

A terceira certeza que se firma é a de que o governo agiu corretamente ao deixar o equilíbrio fiscal momentaneamente em segundo plano para adotar um “orçamento de guerra”, com gastos da ordem de R$ R$ 212 bilhões (2,9% do PIB). Com a decretação do estado de calamidade, o déficit fiscal deste ano pôde ser legalmente elevado, de R$ 124,1 bilhões para R$ 419,2 bilhões.

Com muitas medidas ainda sujeitas à aprovação no Congresso, o pacote abrange programas de transferência de renda e alívio fiscal temporário para empresas, em especial micros e pequenas - que são as que mais empregam -, além de injeção direta de R$ 8 bilhões para gastos em saúde, auxílio para trabalhadores informais e autônomos, liberação antecipada do FGTS, linhas especiais de crédito, desoneração temporária do IOF, redução de uma série de contribuições, refinanciamento de dívidas de estados e municípios, e aumento da liquidez do setor financeiro, a partir da redução de depósitos compulsórios, entre outras.

Ainda assim, a nossa atividade econômica, que seguia uma tênue recuperação, deverá ter um recuo de 5% este ano, senão maior, enquanto a queda no PIB global, segundo o FMI, deverá ser de 3%, confirmando as previsões mais pessimistas feitas em início de fevereiro. Isso faz com que, nessas variáveis que se consolidam em relação ao cenário, citadas acima, acrescentemos um quarto ponto que merece ser assimilado como meta a ser retomada no médio prazo, sob o risco de termos, logo à frente, uma conjuntura mais complexa e desafiadora, com dificuldades ainda maiores de recuperação.

Trata-se justamente das medidas visando à reconstrução do equilíbrio fiscal e à melhor gestão orçamentária, o que passa pelo encaminhamento da Reforma Administrativa, indispensável à reestruturação da máquina pública. Esse é o caminho que permitirá que no futuro mais recursos sejam destinados a áreas essenciais, como saúde, educação, segurança e infraestrutura. Na sequência, uma Reforma Tributária passa igualmente a ser urgente, a fim de dar mais racionalidade ao sistema, abrindo espaço para a progressiva redução da carga, o que depende, em grande medida, da própria reestruturação da máquina pública.

Para se ter noção da importância desse reequilíbrio fiscal, vale dizer que, com as medidas de socorro econômico adotadas pelo pacote do governo este ano – ressalte-se, indispensáveis -, a dívida pública bruta brasileira alcançará 98,2% do PIB, em contraste com uma a previsão inicial de 93% e contra 89,5%, em 2019. Representando praticamente a totalidade do PIB, a despeito da Reforma da Previdência, já realizada, e de uma série de medidas adotadas nos últimos anos para conter as despesas discricionárias correntes, esse patamar é perigosamente elevado. Cabe dizer que, embora esteja abaixo do de alguns países desenvolvidos - que têm maior capacidade de financiamento de seus déficits -, está bem acima dos países da América Latina (em média, 78% do PIB) e dos emergentes (62%), incluindo a China.

Hoje todos nós sabemos que quanto maior a dívida, maiores as incertezas. No nosso caso, o histórico de crescimento da dívida pública embute outro problema, relacionado à má qualidade dos gastos ao longo de décadas, com ênfase no custeio de uma máquina muito dispendiosa - e invariavelmente pouco eficiente -, em detrimento de mais investimentos em áreas essenciais, como a infraestrutura, o que só reforça a necessidade de reversão dessa lógica por meio de uma Reforma Administrativa. É não apenas uma questão de ordem prática, mas moral. Tivéssemos investido pesadamente em hospitais e saúde, por exemplo, certamente estaríamos mais equipados neste momento para enfrentar a pandemia.

A infraestrutura não poderá ser negligenciada na retomada do crescimento. Na verdade, ela faz parte do arsenal com o qual o país conta para promover essa recuperação e deve estar entre as prioridades contemplares às medidas econômicas emergenciais. Os sinais de que o comércio exterior brasileiro já foi significativamente afetado pelos efeitos da pandemia, com repercussão negativa na atividade portuária e no transporte marítimo, são nítidos. Com a redução das importações, mormente provenientes da China, devido à queda de produção e de demanda interna, em abril houve diminuição significativa de movimentação de cargas nos Portos de Santos, Navegantes, Itajaí e Suape, entre outros, em contraste com o bom desempenho no início do primeiro trimestre.

A alta do dólar, fator que também prejudica as importações, permitiu ao mesmo tempo uma relativa melhora das exportações no último mês, sobretudo grãos, mas o cenário ideal seria o de crescimento das duas vias. Isso porque o comércio exterior precisa trabalhar de forma orgânica, para que seu crescimento seja sustentável e consistente. Válido é sempre lembrar que a diminuição das importações pode, por sua vez, acarretar problemas pontuais relacionados à falta de contêineres vazios para os embarques destinados ao exterior. Prevenindo um gargalo que pudesse prejudicar exportadores, armadores de peso internacional já começaram a remanejar contêineres para o Brasil. Num momento de crise, essa logística torna-se mais complexa, sobretudo em decorrência dos cancelamentos de escalas que ocorrem em todo mundo, e por isso mesmo reveste-se de ainda maior importância.

Nesse jogo de perdas globais, questões momentâneas que afetam outras nações podem igualmente favorecer o Brasil, como é o caso da quarentena de 14 dias decretada pela China a tripulações de navios de 153 bandeiras (num total de 500 embarcações e 7 mil tripulantes). Como não estamos incluídos na restrição, isso pode representar redirecionamento de demanda para nossos portos. Mas não é com vantagens aleatórias que o país deve contar. Até porque, os problemas com os quais nos deparamos são sistêmicos e de amplo espectro. A cadeia produtiva é um termômetro confiável. Pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) realizada este mês, por exemplo, indica que 67% dos empresários relatam queda na demanda por serviços de transporte de forma geral.

Algumas medidas devem estar no nosso horizonte. No curto prazo, dentro do pacote de providências do governo para enfrentamento da pandemia, seria razoável estudar benefícios temporários para terminais portuários e empresas de navegação, a exemplo do que está sendo feito para os setores aéreo e de turismo. Paralelamente, é preciso rever os bloqueios rodoviários, que dificultam a circulação de cargas até os portos. No médio prazo, é indispensável seguir apostando nas referidas reformas, pois são elas que tornarão nossa maquina pública mais eficiente, desonerando a economia. Vale dizer que a pandemia de Covid-19 serviu para mostrar a importância do Estado no enfrentamento de crises. Quanto mais eficiente for esse Estado, melhores serão os resultados em prol da sociedade.

Por fim, no longo prazo, a exemplo do que todo o mundo já esboça fazer, é imperativo repensar a nossa dependência do produto Made in China. O Brasil precisa ter uma estratégia para a revitalização de seu setor industrial, e ela deve estar alinhada a uma política de maior inserção global. Não faz sentido que a oitava economia do mundo se contente em ter participação ínfima (de 1,1%) no comércio global e siga sendo mero exportador de matéria-prima extrativa, como no tempo colonial. Longe de preconizarmos um dirigismo industrial, que sempre anda na contramão da eficiência e da competitividade, é mais do que hora de repensarmos uma política de revitalização de nossa indústria, centrada nas novas tecnologias, sob pena de nos tornamos, na prática, uma província ultramarina chinesa.

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*Todo o conteúdo contido neste artigo é de responsabilidade de seu autor, não passa por filtros e não reflete necessariamente a posição editorial do Portogente.

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