Giovanne Bertotti*
O que define a palavra acessibilidade? Se não uma via de duas mãos, aonde cada um pode ir e voltar por ela. Pensar em acessibilidade é aceitar que o mundo pode ser igual para todos. Mas quando falamos de igualdades em um mundo contemporâneo, surge a palavra “utopia”, e como Eduardo Galeano definiria a utopia é a mesma forma que defino e penso sobre a acessibilidade. “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. A acessibilidade se encontra no mesmo padrão, não só como uma utopia que nos faça andar, mas que também não deixe nosso lado humano inerte perante as nossas capacidades de fazermos um mundo diferente.
Acessibilidade é uma das formas de andarmos em um movimento contínuo para o caminho do horizonte, do futuro, e principalmente, de um universo aonde as pessoas com deficiência (PCD), os estrangeiros, as pessoas leigas de tecnologia, possam encontrar nessa palavra um alicerce para poderem também usufruírem dos benefícios da tecnologia. Quando pensamos nessa via de duas mãos, não podemos deixar de acreditar que a acessibilidade não é somente uma ação voltada a um grupo, a uma minoria, mas sim um movimento que nos gira para o caminho de nos encontrarmos no mesmo ponto no final de tudo.
Pensando no retrato contemporâneo do Brasil, hoje segundo o censo do IBGE 2010, existem mais de 45 milhões de pessoas com alguma “necessidade especial”. Esses números equivalem a população da Argentina, ou da Espanha, ou a um quarto da população brasileira que muitas vezes é negligenciada. Ao falarmos em âmbito global de acessibilidade ainda inserimos os idosos, os estrangeiros, entre outras pessoas, que contém algum tipo de limitação com objetos na realidade, ou no mundo virtual.
Falar sobre acessibilidade não é apenas tornar-se locutor de um discurso repetitivo, cansativo, ou idealista de um mundo que muitos não pensam que exista. Falar de acessibilidade é usar a frase de Heidegger “vir a ser”, criar a palavra alemã dazein (existência) dentro de si mesmo para compreender e poder habitar esse universo particular de cada um.
Pensando em um mundo digital acessível hoje, temos as diretrizes de base da WCAG 2.1 como a forma de programar e construirmos; sites, aplicativos, tecnologias que sejam adaptadas ao mundo acessível para todos os sujeitos. A criação da WCAG (Web Content Accessibility Guidelines) se fez necessária quando a W3C percebeu a necessidade de padronizar questões de acessibilidades dentro das páginas web. A WCAG, não visa apenas criar padrões de acessibilidade para pessoas com necessidades especiais, mas sim para pessoas que necessitam de um mundo digital mais fácil de ser acessado. Logo, a WCAG com o seu desenvolvimento pensa em pessoas com autismo, TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), pessoas com necessidades especiais, estrangeiros, idosos, pessoas leigas no mundo das tecnologias, etc. Por isso, a acessibilidade é uma mão de duas vias, pois por muito tempo a palavra “acessibilidade” era usada somente para as pessoas com alguma limitação física, diferente de como ela é visualizada hoje, que é para todos poderem acessar as mesmas informações, os mesmos prazeres, as mesmas situações e as mesmas experiências.
O trabalho de acessibilidade no mundo digital é analisar os sites, os aplicativos, as tecnologias e ver se elas são baseadas nas diretrizes da WCAG e se as mesmas seguem os níveis de critério de acessibilidade A, AA e AAA. Baseadas nos 4 (quatro) princípios que são eles; perceptivo, operável, compreensível e robusto. Nesse ponto, os Q.A de acessibilidade visam analisar se um site e/ou um aplicativo está seguindo essas normas supracitadas. No ponto perceptivo são analisadas as informações que são percebidas pelas pessoas com necessidades especiais, se há alguma diferença entre o que uma pessoa percebe, e como ela será transmitida para a pessoa com necessidade de acessibilidade. O ponto operacional está ligado a como a pessoa poderá operar dentro dessas tecnologias caso necessite do uso de tecnologias assistivas para obter informações. O compreensível está ligado a forma que os textos estão sendo passados para o usuário. E o robusto está ligado a forma de programação dos códigos e o quanto eles estão adaptados para o uso de tecnologias assistivas.
Nesse caso, o Q.A de acessibilidade, irá analisar por exemplo; se não existem indicativos de click na imagem ao lado para acessar o conteúdo; ou click aqui nessa imagem para continuar; click na flecha ao lado (e ser só um ícone). Caso exista uma informação desse gênero, é observado um bug no campo de acessibilidade, pois pessoas com dificuldades visuais não irão perceber essa informação. Da mesma forma caso contenha dentro da página, ou dos aplicativos, partes que não são navegáveis por teclado, dessa forma o sujeito não consegue operar dentro da página e obter as informações. Outro ponto, são as mensagens “click aqui para acessar” formatação em modelo de um texto e um link abaixo. Pessoas com autismo poderão clicar no local indicado e não usarão o link que está abaixo, ou que se encontra ao lado, por não compreenderem o significado da informação. Outro exemplo é o texto “seu dinheiro voando do seu bolso para a sua carteira”, esse tipo de texto figurativo pode ser prejudicial para pessoas com autismo, pois trazem um significado para aquela pessoa da qual ela não consegue compreender com as suas limitações cognitivas. Citamos; o autista acreditará que o dinheiro dele realmente irá voar do seu bolso para a sua carteira. Outro ponto a ser analisado é em relação a como os códigos são escritos; se cabeçalhos são formatados como cabeçalhos; links como links; botões como botões; se o wai-aria (Web Acessibility Initiative) é usado da forma correta para fornecer acessibilidade para o site; se as normas da W3C para criação de sites são usadas ou se o HTML 5 está bem escrito sem erros de programação.
Nesse ponto, a acessibilidade vem com as boas práticas de criação de páginas web e aplicativos, afim dê fazer com que os programadores possam construir da forma mais simples possível, pois assim conseguirão tornar as informações acessíveis para alguém com alguma deficiência, ou pessoas idosas, estrangeiros, etc.
Hoje em dia existem várias formas de trabalhar com acessibilidade, desde trabalhos individuais até formatos de trabalhos em dupla, para poder auxiliar a pessoa com alguma necessidade especial dentro de seus testes. Atualmente trabalhamos com o formato de acessibilidade em duplas, sendo uma pessoa com limitações visuais e uma pessoa vidente (que enxerga) para auxiliar um indivíduo com partes do teste que podem acabar não sendo observadas pelo testador. Um desses exemplos, são os testes de contraste, para ver se as cores usadas dentro do aplicativo e/ou da página web, são compatíveis com as diretrizes de acessibilidade da WCAG. O vidente também é responsável por analisar e passar o conteúdo da página web, ou do aplicativo para o usuário com a limitação visual, para que ele possa testar se o software de tecnologia assistiva está informando-o sobre esses elementos dentro da página. Logo, o trabalho em companhia é efetuado para ajudar o desenvolvimento dos testes de uma forma mais adequada. Os videntes também usufruem de uma ferramenta “axe” para que possam analisar páginas web com uma certa agilidade “automação de análise de códigos” HTML para encontrar bugs. Mas a pessoa com dificuldades visuais também tem a obrigação de analisar os conteúdos e o código escrito para ver se ele está se adaptando a forma correta de escrita.
Na questão de abertura de bugs, hoje existem várias formas de abri-los. Entre elas, o uso da ferramenta “jira” para abrir, movimentar, fechar histórias, subtestes, abrir subbugs e criar uma interação entre o desenvolvedor e o analista. A ferramenta é usada por pessoas com dificuldades visuais, contendo uma usabilidade pelos leitores de tela, podendo assim facilitar o contato entre o profissional e o desenvolvedor, para conseguir agilizar os processos. Também existem formas de planilhas para criar os bugs e enviar para os “Devs”, para que os mesmos possam usá-las como suporte de correção dos bugs de acessibilidade. Na abertura de um bug a funcionalidade é a mesma que um Q.A funcional, deve descrever o título para aquele bug, criar uma descrição sobre como o comportamento acontece para que o desenvolvedor possa simular e compreender também o defeito.
Muitas vezes quando falamos de acessibilidade digital, de testes de acessibilidade as pessoas pensam que o teste é o mesmo que o funcional, ou que se testa da mesma forma. Nesse pensamento há uma crença disfuncional, a qual se pensa que acessibilidade está nos mesmos padrões de testes funcionais. Entretanto, as normas da WCAG, não seguem um padrão de testes funcionais, mas sim uma análise sobre o quanto um site está sendo acessível para as pessoas.
Como todas as áreas a acessibilidade digital também passa pelo mesmo dilema de automação. Hoje existem muitos Q.A de acessibilidade que acreditam, que pode existir uma forma de automação digital, enquanto no outro campo, a briga se mantém sobre a questão da validação dos testes, que são diferentes das validações hoje obtidas pela automação. Hoje a automação tem a visão de construir robôs que possam simular a experiência do usuário dentro dos sites, afim dê comprovar se as funcionalidades da página estão corretas. Todavia, a análise de acessibilidade não segue o padrão de validar a funcionalidade, mas sim, se um link está com descrição, se um botão flutuante é acessível a um usuário de leitor de tela, analisar se o usuário consegue navegar por dentro da página sem ser prejudicado e se consegue ter as informações que o outro está obtendo. Logo, a automação em acessibilidade, é um campo vasto, pensativo, questionável, por não se enquadrar no contexto em que vivemos sobre a automação.
Mas de outra forma, a automação nos últimos tempos vem ganhando seu espaço dentro do mundo da acessibilidade com ferramentas que fazem a validação de códigos HTML, para informar se um site está seguindo os padrões. Podemos citar como exemplo de ferramentas; o Google “ligthhouse”, além do “axe” que vão analisar e validar os códigos dentro da página web. No mundo mobile são poucas as formas de conseguir criar uma automação, pela questão da validação de códigos.
Por outras vias, com o advento do uso do python dentro do Brasil, um Q.A de acessibilidade criou uma biblioteca de automação chamada “Yris” que trabalha com a análise de códigos, a validação do leitor de telas, a validação da experiência e o funcionamento de um ciclo dentro das páginas web. Essa ferramenta se encontra em desenvolvimento, mas promete uma grande mudança no mundo dos testes de acessibilidade digital, pois ela tem como foco analisar a experiência do usuário e não só a questão da usabilidade do site. A biblioteca de automação criada em python, hoje, já consegue fornecer alguns feedbacks voltados a testes visuais e não visuais de acessibilidade.
Observamos que a caminhada pela nossa “utopia” cada dia se encontra mais avante, pois como as tecnologias se desenvolvem, muitas vezes elas não são pensadas nas pessoas com alguma limitação de acesso as mesmas. Por isso, acredito que a acessibilidade é um caminhar infinito, pois quando se pensa que o mundo é acessível, é quando nos acomodamos sobre o que realmente é acessibilidade no dia-a-dia. Não podemos deixar com que o mundo dessas 45 milhões de pessoas no Brasil seja um retrato esquecido dentro da história, mas temos que sim nos tornarmos sujeitos responsáveis por esse fenômeno de mudança.
Parafraseando Rubem Alves com a metáfora de Søren Kierkegaard “não podemos deixar com que a acessibilidade se torne a história do dançarino que acreditava que voava, mas que somente pulava muito alto”. Na história, o dançarino pulava em alturas inimagináveis, e arrancava aplausos da plateia, mas todos riam quando ele falava que voava, pois ele não voava, mas sim apenas conseguia pular muito alto. Não podemos deixar com que a acessibilidade se torne essa metáfora, quando falarmos que o mundo é um lugar acessível, e os outros que necessitam darem risada do que é dito. Pelo contrário, não podemos imaginar o que não existe, mas sim temos que dar o nosso melhor e acreditar que a acessibilidade é uma ação dinâmica e que precisa estar em movimento, pois a tecnologia sempre se encontra em mudança, e a acessibilidade digital deve sempre andar ao lado dessas inovações.
* Analista de Testes na Yaman e Psicólogo Clínico no Espaço Catarse É Especialista em testes de acessibilidade web e mobile.