Quarta, 27 Novembro 2024

Gilberto Alvarez, diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber

É muito importante insistir na demarcação das diferenças conceituais e políticas que dizem respeito às palavras acessibilidade e inclusão.

A ampliação do acesso diz respeito às situações concretas nas quais e por meio das quais se intensifica a democratização dos processos de entrada e de participação no amplo e diversificado espectro dos direitos.

Ser abrangido por um direito diz respeito às lutas por reconhecimento e ao combate a privilégios que justamente são privilégios porque retêm em alguns o que diz respeito a todos.

A inclusão é parte seguinte do processo. Diz respeito aos esforços para transformar práticas, lógicas operacionais, modos de fazer e estruturas administrativas para garantir àquele que teve acesso o necessário para permanecer; mais ainda, para permanecer sem correr o risco de tornar-se aquilo que Pierre Bourdieu denominou de “excluído no interior”, que é a condição de quem “está dentro, mas permanece fora”.

A recente ampliação no acesso ao ensino superior tornou-se um dos capítulos mais brilhantes na história da democratização da educação brasileira. O ENEM, nesse processo, se consolidou como dispositivo democratizante, transcendendo a condição de exame.

Porém, a ampliação do acesso rapidamente demonstrou que estávamos (na verdade, estamos) pouco ou nada preparados para as ações inclusivas, à medida que permanecer tornou-se obstáculo intransponível para muitos jovens.

Convivíamos com as sombras do abandono de posições intensamente sonhadas em decorrência da impossibilidade de permanecer.

Mas, na dinâmica das evasões, outro dado sombrio se mostrou.

Não foram poucas as situações nas quais transpareceram as assimetrias de nossa sociedade na disseminação da ideia de que o acesso conduzia o pobre às situações diante das quais não tinha como responder, como se “não estivesse à altura” do direito conquistado.

Quando manifestações desse perfil se mostravam, os déficits inclusivos eram escamoteados. Ou seja, não ficava imediatamente claro que a não permanência decorria de uma falha estrutural do ensino superior que estava obrigado (sim, obrigado!) a garantir que a acessibilidade fosse completada com as demandas da inclusão, não admitindo, assim, que na primeira já estivesse implícita a segunda.

Devolvia-se ao estudante pobre a responsabilidade pelo fracasso, mas a brutalidade dessa situação podia tornar-se ainda mais sombria. E se tornou.

O Ministério da Educação informou que para o ENEM 2018 o número de isentos, ou seja, o número de inscritos dispensados da obrigação de recolher a taxa de inscrição, declinou quase 30% em relação ao ano anterior.

O Brasil voltou ao mapa da fome. O país está cada vez mais pobre ao mesmo tempo em que produz cada vez mais ricos.

Se a situação que temos revela que o descuido com a inclusão tem efeitos perversos, o atual cenário pode estar evidenciando também que até o acesso está sofrendo um “efeito bloqueio”.

Se parte da sociedade brasileira nunca admitiu que o ensino superior fosse aberto às populações historicamente excluídas, combatendo incansavelmente a consolidação de recursos para que políticas de permanência (de inclusão, portanto) se consolidassem, atuando assim para que permanecer fosse impossível para muitos, possivelmente estamos testemunhando o aprofundamento dessas assimetrias sociais.

A divulgação de que tivemos 30% a menos no número de isentos exige considerar que prazos insuficientes, divulgação precária e organização descuidada do processo inviabilizaram o acesso a esse direito.

Mas pode também representar que, para além do descaso que nos caracteriza, muitos jovens pobres, filhos de pais desempregados, estão se convencendo de que o acesso não lhes diz respeito e que as dificuldades de permanência sequer serão buscadas porque as dificuldades de acesso serão evitadas.

Lembremos que as propagandas governamentais a respeito do “novo” ensino médio que “está chegando”, inúmeras vezes indicou que o jovem “quer mesmo trabalhar”, “quer mesmo ter sintonia com o mercado de trabalho”.

Para quem emite essa mensagem, o jovem que “quer mesmo trabalhar” não precisa daquilo que a seu ver é “naturalmente” herança de alguns.

Mais uma vez, a situação faz lembrar Darcy Ribeiro, que afirmava que o Brasil conservou um “pelourinho profundo”.

Temos quase um milhão e meio de jovens que ficaram sem a isenção para fazer o ENEM. Eles não desistiram do ensino superior porque estão trabalhando e com a vida já resolvida.

Eles pararam (ou foram parados) por quê?

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