Quarta, 27 Novembro 2024

Jurandir Renovato é jornalista e editor executivo da “Revista USP”

Para o Marcelo

É curioso o fascínio que os carros exercem sobre as pessoas. Meu filho Jonas, quando criança, não podia ver um carro rodando na rua ou estacionado, que logo ia, com os olhinhos inquietos, fazendo mil perguntas. E depois repetia tudo com uma precisão espantosa, declinando marcas e modelos que eu mesmo desconhecia.

De alguma maneira, a simples visão de uma máquina que, segundo sua compreensão infantil, locomovia-se feito animais (e certa vez chegou mesmo a entrar debaixo de uma Kombi para verificar se lá havia tetas), fazia com que as células de seu ainda diminuto cérebro se rearranjassem de modo a reter toda informação que obtinha.

O carro representa o auge de uma revolução que começou bem lá atrás, com a descoberta do fogo e depois da roda, até chegar ao vapor, ao motor a combustão etc. Ele é o símbolo, por assim dizer, da sempiterna insatisfação humana diante dos limites impostos pelas leis naturais. Da supremacia do Homo faber. Também é o ponto alto da civilização industrial, com suas linhas de produção e tudo mais que iria transformar a organização do trabalho e a sociedade do século 20.

Com o carro espaço e tempo se contraem, os ponteiros do relógio se aceleram, tudo se torna mais rápido, mais próximo, mais conspícuo. As autoestradas criam a sensação de liberdade sem limites. Também de poder. Onde pensas que vais, América, neste carro reluzente pela noite?, pergunta em certo momento o personagem de Kerouac. Com o carro – on the road – tudo se torna possível. Natural ser cultuado como a um deus.

Aviões, navios e trens podem até ser mais glamourosos, mas é o carro que se identifica com o homem comum, compartilhando seu dia a dia, não como parte ou extensão do seu corpo, mas numa simbiose. E é nesse sentido que, de alguma forma, os automóveis se prestam a projetar as necessidades mais subterrâneas das pessoas. Quem se julga baixo, prefere carros grandes; os mais velhos, veículos potentes e velozes; carecas, por alguma misteriosa razão, adoram conversíveis.

Dentro do carro as relações se modificam, brutalizando-se, a linguagem é reduzida ao essencial, às vezes a menos que isso, a algo abaixo da função fática, quando não a ofensas e palavrões gratuitos, a grunhidos, chiados, uivos, que se misturam a roncos de motor, cantadas de pneu, buzinas...

Um arranhão em seu carro é um talho em sua pele. A interação homem-máquina. A simbiose! E não só o carro pertence a você, mas tudo que está ao redor dele. O outro é sempre o invasor, o inimigo, o usurpador daquilo que é seu. E não ouse esse filho da puta entrar na sua frente! Até que você se vê obrigado a parar – num baita congestionamento.

Em um conto do Philip K. Dick presenciamos o momento em que todos os veículos param por total falta de espaço, numa espécie de trânsito absoluto. Sem mais o que fazer, as pessoas saem de seus carros, estupefatas, em nirvana coletivo. É quando se restabelece a comunicação.

E é na esteira da comunicação (ou da falta dela) que se introduz uma outra máquina em nossas vidas. Quem poderia imaginar que aquele aparelho, cuja invenção sempre fora atribuída a Alexander Graham Bell, mas que hoje é imputada ao italiano Antonio Meucci, um dia poderia ser carregado em nossos bolsos para todo lado, tornando-se, assim como os carros, um dispositivo móvel, e que não serviria apenas para falar?

A onipresença invasiva dos celulares não é apenas algo impressionante. É um fato. Você está numa fila de banco e o sujeito na sua frente começa a brigar com a namorada pelo celular. Como está no viva-voz, você tem acesso à briga bilateralmente. Ele fala com certa (mínima) discrição. Do outro lado, sua interlocutora, resguardada pelas paredes do seu quarto ou de sabe lá onde esteja, mete a marreta nos ouvidos do namorado e dos que estão num raio de cinquenta metros. E você só pensa que poderia ter evitado tudo isso caso usasse o celular para fazer suas transações financeiras.

Realmente, hoje em dia, falar é a última das utilidades do celular. Outro dia, numa mesinha de calçada, no lusco-fusco de uma tarde de verão em que um copo de cerveja e uma boa conversa fiada nos fazem dar sentido à vida, eu tive de interromper uma consistente argumentação em prol do sistema tático do novo técnico do Palmeiras para observar, intrigado, para não dizer estarrecido, um grupo de jovens executivos numa mesa próxima.

Recém-saídos de algum escritório refinado e bem-refrigerado, lá estavam eles, com seus ternos e tailleurs de grife, fruindo o indefectível happy hour das sextas. Mas não conversavam entre si. Cada um abstraía-se com seu próprio smartphone, indiferente ao resto do universo. Talvez, pensei comigo, estivessem mandando mensagens uns para os outros, interagindo virtualmente entre eles, pelo Whatsapp ou Facebook, mas convenhamos... De algum modo, tamanha era a concentração e o silêncio, que era como se lessem livros numa biblioteca. Foi o que me pareceu.

Livros! Se pensarmos bem, o livro também é uma máquina. Seu mecanismo, mesmo sendo bem menos sofisticado, do ponto de vista tecnológico, que os de carros e celulares, precisou de muito tempo para se aperfeiçoar, desde os tabletes de argila, passando pelo papiro, pelo pergaminho, até chegar ao códice medieval e, por fim, à prensa móvel de Gutenberg. E, como aprendemos, a mudança radical operada pela reprodução impressa de ideias – e, portanto, pelo livro tal qual o conhecemos hoje – foi tão ou mais impactante que as revoluções industrial e digital.

Porém, diferente da mobilidade dos carros, o livro exige que você fique parado; diferente da falação, auditiva ou não, dos celulares, o livro exige o silêncio. Silêncio, exílio e astúcia, diria Stephen Dedalus no Retrato do artista quando jovem. Visto assim, é como se o livro remetesse a um tempo outro, um tempo que talvez nunca tenha de fato existido, um tempo de quietude e sensatez, longe da balbúrdia das ruas e da tagarelice das redes sociais.

Ao tornar as pessoas imóveis e mudas, tirando-as do convívio social, o livro, paradoxalmente, não só promove um diálogo maior entre elas, por meio do indissolúvel vínculo entre autor e leitor, como as faz visitar lugares os quais a milhagem de seus cartões de crédito dificilmente permitiria.

Ainda assim, em termos de valor concreto, o livro não significa nada. Mesmo sendo um objeto relativamente caro, ninguém – com a exceção de alguns bibliófilos inescrupulosos e de muitos estudantes duros – vê nele algo que valha a pena ser roubado. Enquanto a indústria de seguros de automóveis e as estatísticas de roubo de celulares crescem a passos largos, os livros permanecem apodrecendo em empoeiradas bibliotecas e amontoando-se nos estoques de editoras e livrarias.

Como se o livro pertencesse a uma outra categoria, àquela das coisas que, mesmo sem conhecer ou desejar, respeitamos, talvez por isso, as pessoas também costumam ser mais condescendentes quando se trata de roubo de livros. Nas devidas proporções, é como roubar pão ou remédio. Tanto a fome pura e simples quanto a sede de conhecimento ou a doença parecem minimizar aquilo que, em quaisquer outras circunstâncias, seria visto apenas como crime. A menos, é claro, que você seja livreiro, farmacêutico ou dono de padaria.

E agora me lembrei de um antigo colega de faculdade, inveterado gatuno de livrarias e afins, que alegava haver uma lei que assegurava, a quem não pudesse pagar, o direito de “pegar emprestado” um livro, independente de ser de um local de comércio. Para sua sorte, ele nunca precisou se valer dessa lei tresloucada ao longo de sua carreira.

Apesar de, ironicamente, ser capaz como ninguém de expor as contradições de uma sociedade tão refratária aos seus bens culturais quanto seduzida por eles, um ladrão de livros não se enquadra mesmo no perfil típico do bandido comum, desses que furtam seu carro ou levam seu celular.

De todo modo, seria surpreendente a situação em que o meliante apontasse o revólver para um rapaz lendo no sossego de um banco de praça: “Perdeu, pleibói! Me passa essa antologia poética do Drummond senão vai levar chumbo!”. Ou uma mulher correndo histérica pela rua: “Socorro! Polícia! Levaram meu Ulisses de Joyce!”. Mas se isso acontecesse, cá entre nós, poderíamos dizer que vivemos numa sociedade melhor?

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