Sexta, 22 Novembro 2024

Tiago Camarinha Lopes é economista pela Goethe Universitat Frankfurt, Alemanha

O cenário político em março de 2018 foi aterrorizante. Apesar da reforma da previdência proposta e defendida pelo ministro da economia de Temer, Henrique Meirelles, ter sido praticamente derrotada devido à falta de votos na Câmara dos Deputados não houve sequer tempo de comemoração desta parcial vitória contra o golpe de 2016. A intervenção militar no Rio de Janeiro veio como manobra astuta que nos jogou em um verdadeiro pandemônio. Sem planejamento, sem lógica, sem nada. Apenas mais uma falácia para esconder o fato de que os atuais ocupantes do poder são inimigos do povo trabalhador e estão dispostos a tudo para não largar o osso. É o terror. Não duvido de que a execução da vereadora Mariellle Franco tenha arrepiado até mesmo os mais brutalizados e desumanizados meninos que são obrigados a servir às forças oficiais como peões de um jogo que sequer compreendem.

A reforma da previdência era uma das etapas esperadas após a concretização do impeachment. Ela deveria ser a sequência lógica da PEC do teto dos gastos, que foi aprovada no segundo semestre de 2016. A limitação dos gastos públicos com todas as despesas não financeiras junto com a diminuição da proteção aos trabalhadores que conseguiram sobreviver até a terceira idade eram os dois pilares que sustentavam todo projeto econômico chamado pomposamente de “Uma ponte para o futuro”.

Tal projeto foi imposto politicamente por meio da derrubada do governo Dilma devido ao fim do ciclo de crescimento econômico iniciado em meados dos anos 2000. Pode ser sintetizado da seguinte maneira: diminuir brutalmente os recursos públicos destinados à promoção do bem- estar social e qualidade de vida da população trabalhadora e proteger o fluxo da riqueza nacional para o bolso dos agentes privados detentores da dívida pública brasileira. Um título muito mais certeiro para tal projeto seria “Farinha pouca, meu pirão, primeiro”.

A dívida que o Estado brasileiro tem com agentes privados assusta não só pela sua dimensão, mas principalmente pela dinâmica à qual ela está submetida. Tais agentes fazem de tudo para garantir que nosso Estado jamais se liberte dessa dívida, porque do contrário eles não poderiam se apropriar como parasitas da gigantesca energia de trabalho humano que o povo brasileiro cria dia após dia, mês após mês, ano após ano, década após década. E aí teriam que trabalhar como todos nós para garantir sua sobrevivência.

O Sistema da Dívida Pública é o processo pelo qual esses agentes atuam de modo a manter o Estado nacional em perpétua situação de dependência em relação a esses agentes privados, que compõem a classe econômica que controla de fato nosso Estado. O Estado não quita a dívida nem declara moratória. Fica no limbo entre essas duas saídas possíveis, como um zumbi a serviço de poderes alheios ao interesse da Nação.

Se o combate à PEC do teto não conseguiu evitar sua aprovação (assim como a aprovação da reforma trabalhista), o mesmo não ocorreu com a reforma da previdência. Por quê? Uma das estratégias mais bem elaboradas de combate a esse ataque foi utilizar a Constituição de 1988 como escudo contra o avanço do sistema da dívida. Essa foi a linha seguida pelos parlamentares, acadêmicos e militantes constitucionalistas que culminou na CPI da Previdência liderada pelo senador pelo Rio Grande do Sul do PT, Paulo Paim. O relatório final da CPI da Previdência formaliza o poderoso e bem fundamentado argumento de que a previdência não é deficitária. Mesmo tendo sua divulgação nitidamente boicotada pela grande imprensa, a CPI da Previdência é um marco e um exemplo de como a militância legalista pode garantir relevantes conquistas mesmo em um cenário adverso como o atual.

O argumento do governo para defender publicamente sua proposta de desmonte da previdência era uma verdadeira falácia. A campanha publicitária explorou a ideia da igualdade para todos na aquisição do direito de se aposentar. Tal tese foi argutamente explorada pelos defensores do governo porque de fato existem privilégios pontuais restritos aos servidores do povo que são inaceitáveis. Esse é o caso dos juízes e seus auxílios-moradias. Só que isso foi um movimento para desviar a atenção do fato de que a reforma colocaria todos em condições piores, mesmo que os trabalhadores mais pobres tivessem sua condição “menos piorada” em comparação com os trabalhadores mais ricos.

É importante lembrar aqui que “ricos” se refere a trabalhadores mais bem remunerados, e não aos proprietários que auferem rendas. São os trabalhadores melhores qualificados com permanência no emprego, maiores salários e atividades menos pesadas.

O governo vinha apresentando esse grupo de trabalhadores que se aposentam por tempo de contribuição (e não por idade) como se eles formassem a elite endinheirada do país. A estratégia do governo para ganhar terreno no campo do embate de ideias era colocar a elite trabalhadora, que inclui a vanguarda do proletariado em sindicatos, mas também técnicos especializados da esfera pública sem consciência de classe no mesmo grupo dos 1% donos do dinheiro, os rentistas e proprietários que não vivem de salários.

Em uma palavra, foi montado todo um discurso jogando o lumpemproletariado, trabalhadores informais e excluídos de baixo contra os assalariados com carteira e servidores do povo do meio para deixar a salvo os 1% de cima que vivem de rendas e não do suor de seu próprio trabalho (visto que aqueles desse estrato que eventualmente trabalham definitivamente não suam como os 99%).

No entanto, como demonstraram a greve geral de 28 de abril de 2017, as diversas manifestações contrárias à reforma da previdência e as denúncias escandalosas de corrupção, o governo Temer estava perdendo a batalha do debate. A derrota definitiva veio com o relatório final da CPI da Previdência no final de 2017 e com a impossibilidade de comprar os votos faltantes no congresso para garantir a aprovação. A intervenção militar no Rio de Janeiro em fevereiro de 2018 teria sepultado tudo, caso não estivéssemos lidando com a turma da transilvânia e criaturas associadas.

O relatório final da CPI da Previdência mostra todos os tipos de cálculos em pauta para verificar a situação econômica da Previdência. Ao desnudar os diferentes métodos de contabilidade que levam a tamanhos variados de déficit/superávit da previdência a CPI demonstra que os conflitos não dependem de divergências técnicas, mas de interesses econômicos que reforçam uma ou outra metodologia de cálculo, dependendo de qual é a mais adequada a servir esses interesses.

De um lado, a metodologia utilizada pelo Governo Federal e pelo TCU (CPI da Previdência, p. 70), faz as contas do montante destinado a financiar a população trabalhadora aposentada excluindo a Previdência Social da Seguridade Social. Nessa interpretação, a Seguridade Social seria referente apenas aos recursos de saúde e assistência social. Além disso, esse tipo de conta não analisa criticamente as modificações por emendas constitucionais que agridem os princípios originais da Carta Magna.

Assim, a DRU (Desvinculação de Receitas da União) é contabilizada como se o Estado não pudesse dispor desse valor para financiar a previdência. Do mesmo modo, o cálculo atuarial é excessivamente pessimista ao não considerar dinâmicas do aumento de produtividade e das políticas macroeconômicas que podem aquecer a economia e gerar maior arrecadação. Tudo isso faz com que se caia na ideia irreal e aterrorizante do déficit da previdência.

De outro lado, temos uma metodologia baseada nos estudos da ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) e de diversos especialistas da área de orçamento público. Nessa metodologia, os indicativos da Constituição Federal para garantir a viabilidade previdenciária para toda a população são seguidos à risca. Só isso já é suficiente para estabelecer que há superávit.

Além disso, o cálculo atuarial aqui leva em conta o aumento da produtividade e considera a possibilidade de programas de estímulo à produção que podem fazer a economia crescer, e com isso, a arrecadação. Ademais, uma reforma tributária progressiva vem como mais um fator que poderia alocar muito mais eficientemente os recursos públicos de modo a garantir todos os direitos constitucionais e permitir um cenário econômico mais equilibrado. Essa metodologia pode ser chamada de constitucionalista e ela demonstra como a Constituição é um instrumento importantíssimo para bloquear os ataques do Sistema da Dívida, que nesse caso tinha a forma de (contra)reforma da previdência.

Cada uma dessas duas formas de averiguar a situação financeira da previdência deve ser julgada diante dos princípios que sustentam a Constituição Federal e de todas as leis que dela devem derivar. Nesse sentido, não há dúvidas de que a metodologia que alardeia o déficit adotada pelo governo Temer e sua equipe econômica é anticonstitucionalista. É por esse motivo que certos economistas se veem na desconfortável situação de ter que dizer que o povo não cabe no “livrinho”, como alguns deles gostam de chamar nossa poderosa e inclusiva Constituição Cidadã de 1988. Poderosa e inclusiva a ponto de poder ser usada como um verdadeiro escudo contra mais um ataque que seria a aprovação da atual proposta de desmonte da previdência.

Mesmo que não tenha havido tempo de comemorar essa parcial vitória, tal fato deve nos trazer esperança e energia para encarar as próximas lutas que continuarão exigindo o máximo dessa árdua conquista jurídica cujos princípios nos guiam para a democracia.

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*Todo o conteúdo contido neste artigo é de responsabilidade de seu autor, não passa por filtros e não reflete necessariamente a posição editorial do Portogente.

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