Quinta, 21 Agosto 2025
publicado originalmente pelo Coletivo Transporte Justo, de Araraquara, interior de São Paulo

Os ecos das chamadas Jornadas de Junho de 2013 ainda se fazem sentir nos mais diversos e profundos setores do país. Das amplas extensões metropolitanas as múltiplas capitais regionais interioranas, expressivos setores da população tomaram as ruas em grandes manifestações públicas. No epicentro dos conflitos a questão do transporte público. Ampliou-se discussões, disseminou-se informações e foram evidenciados os conflitos de interesse. Muito se acumulou de conhecimento sobre os perversos mecanismos e interesses que levam ao estado atual do transporte público brasileiro, pautado por tarifas elevadas, super lotação, más condições de trabalho para funcionários e a obsolência das frotas de ônibus e trens que circulam pelas cidades brasileiras. A questão do favorecimento do transporte individual pelas políticas federais e os interesses que levam a esta política bem como as grandes quantias de dinheiro público transferidos como subsídios para as operadoras privadas de transporte coletivo e a limitada transparência e controle sobre estes valores milionários também ganharam grande notoriedade. Também foram apontadas as relações entre grandes empresas de transporte e agentes políticos através de doações ocultas no período das eleições e desmembramentos variados que tais praticam podem levar.

Afirmou-se a ideia do transporte público como direito fundamental necessário a ser garantido pelo estado, reforçando a necessidade e importância de entidades de controle local e público assumirem papel de relevância no setor. No Brasil menos de dez cidades contam com autarquias ou empresas com estas características, e a análise delas em detalhes traz importantes informações para compreender melhor o jogo de interesses que envolve o transporte público no Brasil. Araraquara, cidade média do interior paulista, é uma destas cidades. A situação do transporte na cidade é particularmente emblemática por envolver simultaneamente uma empresa pública – Companhia Trolebus de Araraquara (CTA) – e operadora privada de transporte – Viação Paraty – ilustrando muito bem os confrontos de interesse que envolvem a questão no Brasil e as opções tomadas pelo poder público neste quadro.

Foto: Transporte Justo

Moradores, em especial estudantes, tentam resistir contra a privatização

A Companhia Trolebus de Araraquara (CTA) foi criada nos anos 50 do século XX, fortemente atrelada a necessidade das industrias têxteis de base locais (Industrias Lupo) então instaladas no centro da cidade de garantirem uma rápida circulação dos trabalhadores que viviam nos bairros onde viviam os trabalhadores localizadas nas bordas da área urbana de então. Representantes da prefeitura viajaram a Itália, país de cujos descendentes compunham porção expressiva da população de então da cidade, onde procuraram conhecer os sistemas de ônibus elétricos – trolebus – que ali operavam como base para desenvolver modelo similar na cidade interiorana. A partir de acréscimo de taxas cobradas pela prefeitura foram levantados os recursos que deram origem a empresa, que aliado a incentivos federais aos sistemas trolebus que por décadas foi considerada referência em transporte público. A façanha foi especialmente espantosa por se tratar de uma cidade interiorana de porte médio de apenas algumas dezenas de milhares de habitantes envolvida em implantar um modelo tecnologicamente complexo para as condições objetivas da época. A empresa passou a ocupar papel importante no imaginário de seus funcionários e da própria cidade.

A partir sobretudo dos anos 80 a expansão urbana da cidade insere-se no contexto da desconcentração industrial paulista e passa a se dar no padrão de “saltação” característico do interior paulista desde então como definido pelo geógrafo Aziz Ab`Saber. Novos bairros de trabalhadores vindos para trabalhar nas industrias recém-transferidas da capital paulista ou nos canaviais que se expandiam nos entornos da cidade passaram a serem instalados muito afastados da mancha urbana já consolidada, de forma que os proprietários de terra das extensões que isolavam os novos bairros da cidade já existente fossem favorecidos pela valorização de suas terras. Em oposição o transporte público foi penalizado por esta opção, com ônibus, motoristas e passageiros forçados a percorrerem maiores trajetos e em condições mais desgastantes. Neste novo quadro se alega dificuldade da CTA de acompanhar com o sistema trolebus os novos bairros devido a necessidade de construção de rede elétrica de suporte nos trajetos das linhas. Neste momento o poder público optou por repassar para operação de empresa de ônibus diesel, a Viação Paraty, as linhas dos novos bairros da zona norte da cidade (Selmi-Dei) que viriam previsivelmente a se tornar alguns dos mais populosos e com população com maior dependência de ônibus dentro da cidade de acordo com dados do IBGE.

Foto: Hangar Ultraleves Imagens Aéreas

Novos bairros em áreas distantes do Centro exigem transporte coletivo de qualidade

Deu-se inicio a dualidade de operação do sistema de transporte da cidade, que se aprofunda ao longo dos anos com o abalo dos subsídios federais dados ao sistema trolebus. Políticas públicas municipais também contribuíram para o declínio da empresa. Opções questionáveis foram tomadas, que em muitas medidas acabaram por favorecer a operadora privada em detrimento da própria CTA. Aprofundou-se ao longo dos anos distribuição desigual de linhas, como apontado pelo professor de administração pública da UNESP Álvaro Guedes em recente declaração ao jornal Tribuna Impressa da cidade de Araraquara. O processo envolveu distintas administrações municipais, sendo a mais recente e expressiva a renovação de 20 anos de concessão das linhas da zona norte para a Viação Paraty – mesma operadora privada que recebeu ou venceu praticamente a totalidade de todas as licitações de linhas desde os anos 80 do século XX – realizada em 2008 na gestão do ex-prefeito Edson Silva. Na mesma administração foram repassadas e/ou criadas outras linhas para a Viação Paraty (Ieda), procedimento que o atual governo pretende intensificar e ampliar.

As políticas públicas municipais além de privilegiaram a operadora privada com a exclusividade dos densamente povoados e dotados de linhas mais lucrativas da zona norte da cidade e simultaneamente a possibilitaram dividir com a CTA muitas das demais linhas de bom potencial no restante da cidade. Para a empresa de controle municipal ficou a exclusividade de linhas de menos rentáveis. O crescimento da desigualdade na distribuição de linhas levou a tentativas de rearranjo do sistema. O ex-presidente da CTA Elias Chediek Neto relatou em audiência pública de 2013 ter durante sua gestão anunciado ao proprietário da Viação Paraty que iria buscar retomar a exclusividade da operação do transporte na cidade para a CTA. De acordo com as declarações do ex-presidente a pressão recebida pouco depois foi tamanha que o levou a ser destituído do cargo sem que conseguisse alcançar seu intuito.

Efeitos da distribuição desigual de linhas foram agravados com os caminhos escolhidos para a criação do sistema de integração da cidade, que não previu mecanismos de compensação entre as duas empresas que operam o sistema de transporte. Desta maneira a CTA arca com os custos de redistribuir pela cidade em linhas de menor volume de passageiros as pessoas trazidas dos densamente povoados bairros da zona norte com exclusividade pela operadora privada. O ex-presidente Elias Chediek Neto e o ex-diretor financeiro José Eduardo de Olivira manifestaram em audiências públicas concordância com a problemática de que o sistema de integração é deficitário para a Companhia Trolebus de Araraquara já por um logo período. Oliveira defende que rever a forma como a integração e dá seria um aspecto central para defender o transporte público de qualidade.

Outras opções do poder público ao longo do ano ajudam também podem ajudar a explicar o enfraquecimento da empresa pública. Dentre elas cabe citar a opção pelo repasse das verbas destinadas ao transporte escolar com exclusividade para a mesma operadora privada que seguidamente recebeu ou venceu as concessões diversas de linha de Araraquara; Os valores médios de repasse são superiores a um milhão de reais mensais para um serviço que crescentemente vem sido questionado, envolvendo inclusive acidentes com ferimentos sérias as crianças e adolescentes transportados.

A seguida adoção de tais políticas pelos governantes – todas com aspectos duvidosos quanto ao fortalecimento do transporte coletivo e da empresa pública – pode encontrar uma possível explicação no financiamento das campanhas eleitorais da cidade, que pouco diferem do quadro geral brasileiro. Somente na última eleição por exemplo os dois mais votados candidatos a prefeito, o vencedor Marcelo Barbieri e sua adversária Márcia Lia, receberam cada um em suas campanhas valores milionários de reais em doações ocultas. As doações ocultas são aquelas recebidas pelos diretórios nacionais ou estaduais dos partidos políticos e depois repassados aos diretórios municipais, de forma que se torne difícil identificar claramente a origem dos valores. Desta maneira faltam mecanismos claros para excluir a possibilidade de que as empresas privadas de transporte coletivo estejam incluídas nos financiadores de campanha e que depois das eleições venham a exercer pressão naqueles que foram eleitos.

Tais fatores estruturais combinaram-se com práticas administrativas questionáveis a frente da empresa – o atual presidente da CTA, Silvio Prada, chegou a declarar em recente audiência pública desconhecer o que seriam os cerca de 3 milhões de reais a receber que constavam no balanço da empresa e considerou não ser central dominar o orçamento da empresa para encontrar soluções para a difícil situação da empresa. Com este valor seria possível comprar mais de 20 ônibus novos para a empresa pública ou ainda mais de 40 ônibus semi-novos. Mais tarde se veio a saber que os valores correspondiam em grande parte a pagamentos atrasados da própria prefeitura a CTA pelos passes necessários para seus programas sociais e funcionários. Também é lugar comum a queixa no excesso de cargos de indicação na empresa com altos rendimentos, que poderiam ser cortados afim de liberar recursos para necessidades mais urgentes.

O conjunto de fatores derivados das políticas públicas de transporte escolhidas levaram a empresa a operar com resultado operacional negativo nos últimos anos, chegando a valores negativos superiores a 3 milhões anuais. Tais quedas nos indicadores passam a se refletir no dia a dia do transporte coletivo da cidade e principalmente dos trabalhadores da CTA, que passam a ter que trabalhar no limite para manter o transporte coletivo da cidade em funcionamento. Mecânicos da empresa passam a ter cada vez maior dificuldade de realizar reparos nos ônibus devido a escassez de peças de reposição e antiguidade dos ônibus, motoristas passam a trabalhar em situação de risco crescente assim como os passageiros. Diante do crescente sucateamento da frota muitos passageiros começam a enxergar com bons olhos as propostas de privatização vinculadas por diversos vereadores e meios de comunicação da cidade.

A atual diretoria e administração municipal elencaram propostas radicais para solucionar os problemas da empresa. Após garantirem que não iriam privatizar a empresa anunciaram suas propostas para o futuro da empresa pública. Sob a justificativa de ausência de recursos para comprar novos ônibus propuseram vender a sede da empresa e garagem, instalada em área nobre da cidade, e usar os recursos da venda para construir uma nova garagem em local não divulgado e renovar a frota da empresa. A bancada de vereadores a oposição na cidade chegou a exigir uma transparência maior na execução da proposta mas manifestou a concordância com as linhas gerais do plano de vender o prédio sob a justificativa de levantar recursos para a empresa e escolher área mais adequada para nova garagem. A venda chegou a ser marcada mas seguidas manifestações populares combinadas com ação judicial empreendida pela união de diversos movimentos sociais e sindicatos da cidade barraram temporariamente o processo. Entre os argumentos levantados estava que vender o prédio de nada adiantaria pois sem modificar os fatores que levavam a empresa a operar no negativo de pouco adiantaria injetar novos recursos. Os mesmos grupos também propunham como alternativa para conseguir verbas para a empresa que fossem cobrados os seus valores a receber bem como se buscasse financiamento em órgãos como o BNDES, já que envolve empresa de economia mista. Vários trabalhadores da empresa que se aproximaram dos grupos responsáveis pelo processo judicial e mobilização popular foram demitidos da empresa, outros tantos relatam terem recebido severas represálias internas por seus posicionamentos.

Nas últimas semanas prefeitura anunciou terceirização de todas as linhas para iniciativa privada. O vice-prefeito e também ex-presidente da CTA, Coca Ferraz, foi a programas de rádios matutinos e defendeu a proposta, alegando a incompetência da empresa pública como justificativa. Revolta toma os trabalhadores com a perspectiva de desemprego certo que souberam apenas pelas notícias na mídia. Mecânicos e funcionários administrativos, já no limite da exaustão para poderem manter as mínimas condições operacionais da empresa, cruzaram os braços enquanto o vice-prefeito seguia dando suas declarações ao rádio. Dezenas de funcionários da CTA se dirigiram a delegacia para realizar boletim de ocorrência por injúria contra o político e foram a câmara municipal cobrar explicações os vereadores que haviam lhes dado garantias expressas de que não veriam a empresa privatizada. Enquanto vereadores tentavam responsabilizar os movimentos sociais que impediram a venda do prédio da empresa os trabalhadores os vaiavam e lhes davam as costas.

Poucos dias depois funcionários realizam assembleia a revelia de seus próprios sindicatos, tirando agenda de resoluções e manifestações para combater a privatização da Companhia Trolebus de Araraquara. Convidam para participar da reunião membros dos movimentos sociais que atuaram na área de transporte nos anos anteriores. Enquanto os meios de comunicação e vereadores seguiam propagandeando a necessidade de venda do prédio e/ou de privatização da empresa centenas de trabalhadores aplaudiam a iniciativa que anulou o leilão do prédio da empresa e viam nela a responsável pela sobrevida a CTA e em consequência de seus empregos. Manifestam a disposição de resistir e buscar reverter o processo até o fim. Não aceitam verem vidas inteiras de dedicação descartadas de uma hora para outra. Profunda revolta se mescla a amor a seus trabalhos, ao amor a sua história conjunta.

Conflitos de interesse são acirrados e colocam-se em rota de oposição nas antigas ruas araraquarenses. Expressivas manifestações devem mobilizar as ruas da cidade nas próximas semanas a começar pelo próximo dia 15 onde os trabalhadores do transporte programam realizar sua primeira intervenção pública, conjuntamente ao dia nacional de lutas. O quadro local ilustra bem os panoramas e embates gerais envolvidos na questão do transporte público que se multiplicam nos mais variados recantos do Brasil. Opções tomadas pelos governantes são muitas vezes questionáveis quanto aos interesses do transporte público. Um transporte público de qualidade e acessível encontra menos obstáculos em problemas técnicos e maiores nos arranjos financeiros e políticos que prevalece a sociedade brasileira. Poucos se beneficiam em detrimento do sofrimento e penúrias de muitos a despeito do aporte de expressivos recursos públicos. A teia de interesse que leva a este quadro mescla políticas federais, estaduais e também municipais, onde encontra sua concretização e manifestação efetiva. Nela também é onde o processo pode ser enfrentado, combinando clareza de visão dos interesses em movimento com determinação e coragem para fazer os enfrentamentos necessários.

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