Quarta, 05 Fevereiro 2025

Baixinho, de óculos e aparentemente mal-humorado, Jean Baudrillard fala rápido demais e a tradutora ao seu lado tropeça inúmeras vezes para acompanhar o pensamento. A platéia, lotada, também parece perdida. O problema nem é a velocidade com que as palavras são proferidas, e sim como as idéias são distribuídas por cada frase. É abril de 2002, e o filósofo está no Brasil como convidado da Bienal Internacional do Livro de São Paulo para divulgar seu último livro, A troca impossível. Mas o que todo mundo quer saber é do seu depoimento polêmico em relação ao último 11 de setembro. Ao fundo do entediado Baudrillard, há um enorme painel retratando (ou simulando, verbo caro ao pensador) os aviões em colisão com o World Trade Center.

Para Baudrillard o 11 de setembro não existiu como acontecimento. Foi um evento mais midiático que qualquer outra coisa. Opinião semelhante ele já havia concedido uma década antes, ao dizer que a Guerra do Golfo teria sido um conflito virtual - uma grande potência atacando um inimigo em potencial, antes de qualquer atentado, para uma platéia global e atenta de espectadores. Declaração que o tornou popular em todo o mundo, menos na sua França natal. Um sucesso acadêmico que o pensador esnobava - não queria ser celebridade (afinal, era um grande crítico da indústria de consumo), mas estava sendo tratado como tal pelo auditório lotado de imprensa e leitores (fãs?) ao seu redor. O que talvez explicasse seu palpável mal estar naquele início de noite.

Quando conseguiu mudar o rumo da palestra para o mundo de trocas impossíveis de que falava seu último livro, recebeu da platéia uma questão que quebrou a tensão que sua presença suscitava. Um membro do público levantou e disparou: “Baudrillard, neste mundo de trocas impossíveis, qual é o lugar do amor?”. Baudrillard parou, meio que sem acreditar no tom la vie en rose da questão, e soltou, quase ensaiando uma gargalhada: “O amor sempre encontra lugar em tudo. Ele está em todo canto, por isso o problema é saber exatamente onde encontrá-lo (risos).”

O episódio acima narrado demonstra bem que com a morte de Baudrillard na última terça, aos 77 anos, morreu também o último membro de uma série de pensadores franceses do século 20 que viraram verdadeiros popstars, com as palavras chaves das suas teorias tornando-se chichês, muitas vezes usados fora de contexto, na imprensa e na boca do povo. Autores que eram uma espécie de oráculo, mesmo a contragosto. Um grupo do qual participaram nomes como Deleuze e seu anti-édipo, o existencial Sartre, o mestre do saber com sabor Barthes e, claro, os simulacros e simulações de Baudrillard.

Baudrillard foi dono de uma trajetória vertiginosa, que abarcou inúmeros tipos de pensamentos. Mas sempre com uma coerência em mente: Preferia o fatal ao banal. Começou sua carreira estudando Bertold Brechet. Depois, como muitos da sua geração, foi capturado pelo nada discreto fascínio do marxismo, chegando a ser responsável por uma das mais famosas célebres traduções de O capital para o francês. Só na década de 1970 é que começou a desenvolver uma linha de raciocínio “transpolítica”, fragmentada e sempre radical.

A fama internacional chegou no princípio dos anos 80, com o lançamento de Simulacros e simulações, livro que continha o teor apocalíptico que fez de Baudrillard famoso. O francês retomava nesse livro a teoria clássica de Platão na antigüidade. Para ele, o real não era o verdadeiro, voltaríamos então ao mito platônico, onde as imagens projetadas na parede da caverna representariam a forma como o homem conhece e interage com o mundo. Seu imperativo. Só que no século 20, isso era feito com a alta precisão das telas de TV e seu zoom obsessivo. Sairíamos do real para hiper-real.

Foi a partir dessa idéia que Baudrillard nos anos 90 polemizou ao discutir que a Guerra do Golfo – deixando de lado as vítimas fatais envolvidas – seria mais uma manipulação midiática que qualquer outra coisa. “O mais importantes não é a realidade”, escreveu, mas a irrealidade, o “não-acontecimento”. Seus simulacros e simulações também foram o ponto de partida para a série de cinema mais popular da década passada, Matrix. Nela, Hollywood retomava que o mundo/o real não passava de uma miragem.

Diante do sucesso do filme e do natural interesse que sua teoria levantou, mesmo em meios fora da academia, Baudrillard desdenhou “não vi e não gostei de Matrix, eles entenderam tudo errado”, disse na época. Ainda assim, ele passou boa parte da vida escrevendo sobre os mesmos assuntos – irrealidade, simulações, não-acontecimento e sobre o conceito de verdade - como uma enorme obsessão. Obsessão que o fez ser tratado como pensador difícil, pouco pragmático e longe das questões sociais em voga.

A questão é que para Baudrillard a sociedade estava/estaria perdida diante daquilo em que ela acreditava ser palpável – “A verdadeira atualidade é rasteira, está em outro lugar, por vezes ela explode, e estamos sempre em atraso em relação a ela. O tsunami é uma metáfora disso. É uma catástrofe natural, mas hoje os verdadeiros acontecimentos assumem essa aparência também. Quando eles chegam, ninguém pode prevê-los, e se diz que os serviços secretos não estavam preparados. Mas não se trata de uma questão de serviços secretos. Haverá sempre uma atualidade explosiva e imprevisível”.

Talvez seja mesmo difícil entender o legado que Baudrillard deixou, uma dificuldade coerente com sua própria obra: Pensar para Baudrillard era um estado em turbulência, que exigia tomar posições fora do gosto médio ou massivo, assim como foi para a geração de grandes pensadores franceses do século 20, que com sua morte se encerra.

Fonte: Jornal do Commercio - 08 MAR 07

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