Ana Maria Gonçalves é escritora.
Tentando entender o que há por trás das políticas de controle da população, a socióloga Vera Malaguti Batista desenvolveu um trabalho interessante sobre o que ela chama de “discursos do medo”. São aqueles discursos que transformam o povo em um “grande outro”, diferente e perigoso. O discurso do medo geralmente é impulsionado pelos que estão mais protegidos, enquanto o risco real e iminente de sofrer violência recai sobre os que se acredita que ofereçam perigo (as minorias, os periféricos etc.).
Trabalho aqui com o conceito do “grande outro”, ou do “estranho/estrangeiro”, como no livro “Strange Encounters: Embodied Others In Post-Coloniality”, de Sara Ahmed. O Outro, na verdade, não é aquele que desconhecemos, mas aquele que representa o perigo do desconhecido.
Mesmo que não convivamos com ele, sabemos imediatamente quem é este Outro, nas suas mais variadas representações, e projetamos sobre ele todo o perigo que acreditamos habitar o desconhecido. Ou seja: o que percebemos nem é a forma exterior, o que está visível aos olhos, mas algo que, em torno de si, traz algo que nos parece familiar, que é o nosso preconceito.
Penso, por exemplo, nos mapas utilizados pelos viajantes nos tempos das grandes descobertas e, sobretudo, naqueles sobre o continente africano. No espaço que ainda não havia sido explorado, no grande vazio, eram projetados os medos do aventureiro ou do colonizador: figuras nas quais até podíamos reconhecer o traço humano, mas que também eram dotadas de características bestiais, como rabos, olhos a mais, chifres, genitálias avantajadas e outras anomalias que poderiam colocá-los alguns passos abaixo do que era considerado humano.
Como bestas, poderiam e deveriam ser abatidos ou domesticados, salvos do atraso e da involução. Esta era uma das justificativas para o acontecimento que moldou o mundo moderno: a escravidão negra. Cara a cara com este “grande outro”, com este “estranho”, os brancos europeus podiam até mesmo reconhecê-lo como igual na forma, apesar da cor da pele, mas interiormente ele já vinha carregado de projeções animalísticas. E foi assim que atravessaram tanto o oceano quanto a História, com o medo branco tomando novas formas de acordo com o contexto social e político do Novo Mundo, até chegarmos ao momento atual.
Segundo Vera Malaguti Batista, foi nas décadas posteriores à Independência, com as várias rebeliões escravas acontecendo país afora, apoiado no racismo científico, que o medo se intensificou. Ameaçador da ordem e portador do caos, o africano, o negro da terra, o escravo, o fujão, o rebelde e o desobediente eram os inimigos a temer, conter, castigar ou eliminar. Para lidar com ele, foi criado o Corpo de Polícia, embrião da Polícia Militar. Estava, oficialmente, instaurada a despolitização das manifestações contra o regime escravocrata e a criminalização dos rebeldes, da mesma maneira que acontece hoje com os movimentos sociais.
Naquela época, já se escrevia nos jornais que “precisamos ter uma polícia que a nós inspire confiança e, aos escravos, infunda terror”. Escravos e libertos eram proibidos de circular pelo espaço público, a não ser quando no exercício de uma função autorizada e pré-determinada. Ainda hoje, a juventude negra, principalmente, ao circular no espaço público, é alvo constante de blitzes, batidas, sacodes, humilhações, ameaças e autos de resistência. E o “nós” aí acima são os que, hoje em dia, se chamam de “cidadão de bem” ou “humanos direitos”. Aqueles que se colocam na posição de defender um dos produtos mais insidiosos da criminalização da cor e da pobreza: a desqualificação jurídica do negro e do pobre.
Para eles, assim como para a mulher de César, não basta serem honestos, precisam parecer. E como é que se parece honesto não tendo o controle sobre a própria representação? Neste caso, quase sempre será suspensa a presunção de inocência, e ele poderá ser condenado – muitas vezes à pena de morte – não por algo que tenha cometido, mas por algo que, obedecendo à projeção de perigo e medo que a sociedade impõe sobre ele, pode vir a cometer. É o ideal lombrosiano aplicado na construção de uma sociedade que internaliza o autoritarismo e se acha no direito de traçar uma linha entre o “nós” e o “eles”.