"Diga o que faz;
faça o que disse”
[Lema da cultura da qualidade]
Parece que não tem fim...
Tudo levava a crer que a “Lista-do-Janot-II” seria “a” notícia da semana. Que com ela nenhuma outra poderia competir. Que daria capa e pautaria as revistas do final de semana.
Mas não! Ainda faltava a sexta-feira...
E esta não se fez de rogada: a operação “Carne Fraca” (um duplo sentido muito apropriado!) tomou conta do noticiário para apresentar esquema envolvendo alguns frigoríficos. Há os que dizem ser casos isolados, pouco representativos. Outros que foi “armação” dos players internacionais do setor de proteína animal.
Pode até ser. Mas, se confirmado, esta seria mais uma cabeça dessa Hidra (mitologia grega): a corrupção brasileira. Só que, diferentemente das já conhecidas, nem será preciso fazer analogias históricas, mirabolantes reflexões sociológicas, análises políticas ou gastar-se tempo com abstrações ou conjecturas: para os “premiados”, suas consequências na merenda escolar e na nossa alimentação são fácil e rapidamente identificadas. A corrupção terá chegado bem mais próxima do nosso dia a dia!
Já virou rotina do noticiário revelações relativas a corrupção em obras e serviços públicos. A lista de executivos estatais, empreiteiros, administradores públicos, governantes e parlamentares envolvidos já é longa; e não pára de crescer. O modus operandi de tais esquemas, seja para enriquecimentos pessoais seja para financiamento de campanhas eleitorais, já está razoavelmente identificado e é praticamente de domínio público. Até a sutil diferenciação de Caixa-2, se de origem “legítima” ou “contaminada”, já começa a fazer parte de conversas com taxistas, em salões de cabelereiros, ou mesa de bar.
Temos aprendido muito. O combate à corrupção até aqui tem-nos sido bastante pedagógico – inclusive sobre seus excessos. Mas a “Carne Fraca”, além de conhecimentos sanitários e alimentares, funcionamento do (jogo bruto) da concorrência e do comércio internacional, é uma excelente oportunidade para que reflitamos sobre o papel do aparato e do funcionamento dos órgãos de fiscalização, controle, regulação e certificação.
O bom é que muitas das lições aprendidas com esse “case” do setor de proteína animal poderá ser muito útil e aplicadas em todos os setores regulados!
Desde logo, pelo que se sabe, as inspeções teriam sido feitas regularmente: segundo protocolos e planos; ou seja, não teria havido omissão de fiscalização. Da consulta aos sites das empresas envolvidas tomamos conhecimento que o ser humano e o meio ambiente são suas grandes referências. Somos informados também que elas são certificadas pelas Normas-ISO de qualidade: pelo menos a ISO-9001. Que receberam inúmeros prêmios e medalhas. Transversalidade, empoderamento, governança e compliance, lógico, não poderia faltar nos discursos e apresentações.
Assim, duas perguntas brotam inevitável e imediatamente: i) o que garantem tais certificações e premiações? ii) qual o significado; para que servem os aparatos de fiscalização, controle, regulação e certificação?
Para a primeira pergunta pouco importa se são “casos isolados” ou não. Pouco importa o quantitativo. Isso porque as certificações de qualidade certificam processos (e não produtos): alguns poucos contraexemplos são suficientes para acender o semáforo amarelo ao processo; e algumas reincidências o vermelho. Portanto, os processos estão em cheque!
Sobre a segunda, vale relembrar:
Nas últimas décadas (particularmente após o fim do regime militar) as funções-meio da administração pública foram progressivamente ganhando relevância: suas organizações passaram a ser mais prestigiadas; em geral mais até que as responsáveis pelas atividades-fim. Suas carreiras estão entre os mais bem remunerados; razão, inclusive pela qual têm atraído pessoas de melhor formação. Certamente há abnegados mas, em geral, seus funcionários têm jornadas de trabalho menor e mais flexíveis; mais férias/recessos; podem ter outras atividades amparadas em lei; as oportunidades de reciclagens e participação em eventos são maiores etc. etc.
São “máquinas” bem estruturadas e que que custam muito à União, Estados e Municípios.
Por outro lado, as certificações demandam longos planejamentos, treinamentos, redesenhos de processos, rígidas auditorias e periódicas reavaliações visando à previsibilidade (“Diga o que faz; faça o que disse”; é o objetivo). Também atuação de consultores especializados e de organizações certificadoras. São processos que custam muito às empresas.
Com licenciamentos ambientais, compliance (no Brasil, caçula das ferramentas de controle) e, mesmo, esquemas estruturados de combate à corrupção (01, 02) não é diferente!
Não é que todo esse (organizado, complexo, sofisticado e caro) aparato, com ou sem “armação” dos concorrentes internacionais, não foi capaz de deter todos os fatos noticiados (01, 02, 03, 04, 05, 06, 07)!
Como explica-lo? O pior é que, infelizmente, esse não é caso isolado dessa frustração:
Os mega-esquemas de corrupção, revelados pela LavaJato, foram praticados em/por empresas que também dispunham desses aparatos. E com um agravante: muitas delas com contas que haviam sido aprovadas pelo respectivo tribunal de contas (também órgãos de fiscalização e controle).
De igual forma, de diversas campanhas eleitorais, cujas contas haviam sido aprovadas pelos respectivos tribunais eleitorais, hoje emergem informações de polpudas Caixa-2 (de origem “legítima” e/ou “contaminada”).
Com tudo isso, a dúvida persiste: qual o significado; para que servem os aparatos de fiscalização, controle, regulação e certificação?
E pode-se ir além: que valor eles agregam à economia, à sociedade, aos avanços da democracia brasileira? Qual a relação benefício/custo da sua existência e funcionamento?
Não dá para contemporizar! “O rei está nu”! Esses aparatos estão irremediavelmente em cheque!
E, nesse esforço de passar o Brasil à limpo, seria muito importante que, a par dos avanços das apurações e eventuais punições da “Carne Fraca”, essa discussão fosse trazida à baila.
(*) Da série “Passando o Brasil à Limpo”: XIX