Luiz Gonzaga Belluzzo é economista, professor, consultor editorial da revista Carta Capital.
A economia americana faz que vai, mas não vai. Em 2016, Tio Sam vai celebrar um crescimento em torno de 2%. Há quem comemore o pleno emprego, fazendo vista grossa para o avanço da precarização associado à queda da taxa de participação na força de trabalho.
Até meados dos anos 70 do século passado, as economias desenvolvidas prosperaram em um ambiente de ganhos de produtividade, sistemas de crédito direcionados para o investimento, aumento dos salários reais, redução das desigualdades e ampliação dos direitos sociais.
Em seu formato “fordista” e keynesiano, o circuito de formação da renda e do emprego era ativado primordialmente pela demanda de crédito para financiar o gasto dos empresários, confiantes nos efeitos recíprocos entre os fatores que ancoravam suas expectativas: 1. O crescimento da renda dos trabalhadores. 2. O avanço dos lucros corporativos e das pequenas e médias empresas. 3. A expansão estável das receitas e dos gastos públicos.
O circuito da renda e do emprego desenvolvia-se, então, nos espaços nacionais da economia inter-nacional, impulsionando o adensamento das relações domésticas entre a manufatura, os serviços e a agricultura. A formação da renda e da demanda agregadas decorria da disposição de gasto dos empresários com salários e outros meios de produção que também empregam assalariados.
Ao decidir gastar com o pagamento de salários e colocar sua capacidade produtiva em operação ou ampliá-la, o coletivo empresarial avalia a perspectiva de retorno de seu dispêndio imaginando o dispêndio dos demais.
Na era da globalização, a redistribuição espacial da manufatura e o avanço tecnológico engendraram a precarização do emprego, a estagnação dos rendimentos dos trabalhadores e, assim, reduziram a capacidade de difusão do gasto das empresas.
As famílias submetidas à lenta evolução dos rendimentos sustentaram a expansão do consumo na vertiginosa expansão do crédito, que criou poder de compra adicional para as famílias de baixa e média renda, ao mesmo tempo que as aprisionou no ciclo infernal do endividamento crescente.
No topo da pirâmide da distribuição da riqueza e da renda, os credores líquidos engordaram seus portfólios com a valorização dos ativos imobiliários e financeiros.
Os detentores de riqueza financeira apropriaram-se, ademais, do “tempo livre” criado pelo avanço tecnológico, que promove simultaneamente a desqualificação da massa assalariada e a polarização do mercado de trabalho; os “desqualificados” tornam-se dependentes crônicos do endividamento, sempre ameaçados pelo desemprego e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência.
Sob os auspícios do capital financeiro e de um sistema monetário internacional assimétrico, ocorreu a brutal centralização do controle das decisões de produção, localização espacial e utilização dos lucros em um núcleo reduzido de grandes corporações e instituições financeiras à escala mundial. A centralização do controle impulsionou e foi impulsionada pela fragmentação espacial da produção.
A centralização do comando no capital financeiro alterou profundamente a estratégia da grande empresa produtiva.
Em seu livro The Road to Recovery, o economista Andrew Smithers demonstra que os lucros acumulados são primordialmente destinados às operações de tesouraria. Já os novos empréstimos financiam a recompra das próprias ações para garantir “valorização” da empresa. Dados do Federal Reserve revelam que, no período 2003-2008, o volume de crédito destinado a financiar posições em ativos já existentes foi quatro vezes maior do que os créditos destinados à criação de emprego e renda no setor produtivo.
Na posteridade da crise de 2008, a reiteração da dominância da forma financeira da riqueza e dos rendimentos das empresas e das famílias endinheiradas está ancorada “em derradeira instância” no inchaço das dívidas públicas nacionais.
Vou repetir uma banalidade: a dívida pública é riqueza privada. Para a compreensão do enriquecimento e reprodução das desigualdades é necessário avaliar o papel do endividamento público no ciclo atual de “inflação de ativos”.
Os “mercados” sustentam uma nova escalada de preços nas bolsas de valores, escorados nas operações do Fed com títulos públicos destinadas a regular a liquidez e manter reduzidas as taxas longas.
Os títulos do governo americano constituem, portanto, o lastro de última instância, fiador das políticas monetárias de “facilitação quantitativa” e de suas consequências para a deformação da riqueza e ampliação das desigualdades.