Ruy M. Altenfelder Silva é presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas e curador do Prêmio Fundação Bunge
Leio n’O Estado de S. Paulo de 26 de junho que, dos 125 projetos de mobilidade urbana que deveriam atender o Brasil na Copa do Mundo e nos Jogos Olímpicos, somente 18% foram concluídos. Dezenas de sistemas de BRTs, VLTs e monotrilhos, concebidos não apenas para servir à população das grandes cidades durante os dois eventos, mas, idealmente, para ficar como legado de desenvolvimento no País, ainda não saíram do papel. Dois anos após a Copa. A um mês dos Jogos Olímpicos.
Trazendo dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) e do Governo Federal, a reportagem atribui tal atraso a motivos pontuais, como falta de dinheiro ou erros de projeto e de planejamento que emperram a liberação de recursos, demandam novos orçamentos ou até inviabilizam obras por completo. Sem discordar de tais avaliações, creio haver um obstáculo sistêmico mais desafiador no caminho da verdadeira mobilidade urbana no Brasil. Porque, enquanto a questão for tratada isoladamente, dissociada de políticas de planejamento urbano, habitação, educação, saúde e desenvolvimento econômico, temo que a maioria dos projetos concebidos para resolvê-la esteja fadada ao fracasso.
Introduzido com impacto na pauta nacional a partir das grandes manifestações de 2013, o tema da mobilidade urbana, até então praticamente restrito a círculos especializados, mostra-se cada vez mais um desafio transversal para nossos gestores públicos. Dificilmente uma solução isolada – como a redução de tarifas ou o investimento neste ou naquele modelo de transporte – resolverá um problema, por natureza, multifacetado.
Essencialmente urbano – 85% da população brasileira reside em centros urbanos, sendo que 45% concentram-se em regiões metropolitanas –, o Brasil vive as consequências de uma explosão demográfica mal administrada. O crescimento desordenado das cidades empurrou moradias para locais distantes dos núcleos de trabalho e de outros serviços urbanos, o que, aliado à deterioração da qualidade do transporte público, conduziu a um país com franca preferência pelo transporte individual. Mais da metade da população (54%) tem algum veículo motorizado em casa (carro ou moto), de acordo com a mais recente Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD 2012), sendo 42,4% só de carros. Preferência que, inclusive, encontra respaldo em políticas recentes de incentivos fiscais à indústria automobilística e de facilidade de financiamento para compra automóveis.
As consequências dessa escolha são mais do que conhecidas: congestionamentos, poluição ambiental e sonora, perda de tempo, de produtividade e de qualidade de vida (para quem perde horas no trânsito, não sobra muito tempo para o lazer, atividades esportivas e culturais, oportunidades de educação, etc.). Isso sem falar nos acidentes e mortes no trânsito e nos múltiplos malefícios à saúde (doenças cardiorrespiratórias, stress, obesidade, etc.).
Enfrentar tais desafios exige, necessariamente, soluções de infraestrutura e sistemas de transporte coletivo mais econômicos, eficientes e integrados. Não à toa, a área da Infraestrutura de Transportes é um dos temas contemplados, neste ano, pelo tradicional Prêmio Fundação Bunge, um dos mais prestigiosos estímulos à produção científica nacional.
Mas essa é apenas parte do problema. Se mobilidade urbana significa não apenas como as pessoas se locomovem, mas também por onde, em que circunstâncias e com quais objetivos, cabe repensar a própria ocupação de nossas cidades. Para citar estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada, “Desafios da Mobilidade Urbana” (Ipea, 2016): “O desafio é estabelecer políticas de aproximação da população mais pobre às áreas de maior dinamismo econômico-social, ou no sentido inverso, promover maior desenvolvimento às áreas mais carentes dos aglomerados urbanos”.
Por outro lado, seja diminuindo o tempo e melhorando as condições de deslocamento (casa-trabalho, casa-equipamentos urbanos), seja encurtando distâncias através de reordenamento territorial, o estímulo a que a população utilize mais os transportes coletivos, se desloque mais a pé ou de bicicleta exige ainda outras garantias, nem todas diretamente ligadas à mobilidade, como segurança e policiamento adequados, por exemplo. Quando até mesmo o envelhecimento da população influencia na questão da mobilidade – afinal, mais idosos significam menos passageiros pagantes, que são quem basicamente custeiam o transporte coletivo no Brasil –, torna-se inegável que a tarefa que temos diante das mãos só poderá ser cumprida com um entendimento mais abrangente e integral do problema.