A Piccadilly pode ser a próxima indústria calçadista do Estado a abrir unidade produtiva na América Central. Propostas para se instalar na República Dominicana, Nicarágua ou em El Salvador, entre os destinos mais badalados na região, aportam desde março na caixa de e-mails da diretora de exportações do grupo Agrings, dono da Piccadilly, Micheline Grings Reigger, e com diferenciais imbatíveis, como baixo custo da mão de obra e isenção do imposto para despachar mercadorias a clientes situados nos Estados Unidos e no México. As regiões centro-americana e caribenha têm tradição neste tipo de manufatura.
Os endereços emergentes, que já fisgaram as coirmãs Paquetá e Schmidt, com plantas desde 2010 na República Dominicana e na Nicarágua, respectivamente, viraram a solução para driblar o desempenho frustrante no resultado externo, ante um dólar cada vez mais desvalorizado frente ao real, e recuperar terreno perdido para os concorrentes chineses. No foco das brasileiras, desponta ainda a Ásia, já que a Vulcabras, dona da Azaleia, anunciou que aportará na Índia. Para a Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), o movimento configura a terceira onda migratória dos precursores do polo gaúcho.
Entre 1950 e começo de 1980, os industriais expandiram as linhas de montagem e com elas a cultura calçadista do Vale do Sinos para o Interior do Rio Grande do Sul, como o Vale do Taquari. Na metade dos anos 1980 e até boa parte dos 1990, o Nordeste, com sua artilharia fiscal demolidora, atraiu dezenas de fabricantes, que tanto fecharam como ampliaram suas bases de produção sulinas. Segundo o diretor-executivo da Abicalçados, Heitor Klein, o novo fluxo teve os primeiros sinais com parcerias ou abertura de unidades na Argentina, a partir da metade dos anos 2000, em uma reação a restrições do governo do país à entrada dos pares importados do Brasil. Ao represar licenças para o ingresso dos produtos, os vizinhos queriam mesmo pressionar para que as empresas brasileiras investissem em bases locais. Foram para lá Paquetá, Vulcabras (Azaleia), Westcoast e Piccadilly. O dirigente calcula que mais dez empresas seguirão os passos de quem já pisou na nova fronteira produtiva. “Se as primeiras que vão se dão bem, outras se encorajam”, antevê o diretor-executivo da entidade.
Micheline assinala que a migração para a América Central está em análise e uma posição deve ser tomada até o segundo semestre. Propostas para ajudar na escolha são enviadas por agências de promoção dos governos, que oferecem plantas completas e até operários. “Estamos considerando a possibilidade. A intenção seria ampliar a produção, mas se não conseguirmos melhor condição cambial, podemos ter de deslocar linhas para lá”, admite a diretora, lembrando que o esforço interno da empresa para manter as vendas externas em 30% dos 8 milhões de pares anuais produzidos mesmo com câmbio desfavorável, boa parte com marca própria e que hoje chegam a 80 países, está se esgotando. “O governo precisa desonerar as exportações, senão nosso trabalho de produto com valor agregado vai por água abaixo”, previne.
A executiva ainda se agarra ao que define como “orgulho de ser made in Brazil” para adiar uma solução final. Mas a recente queda do dólar para abaixo do piso de R$ 1,60, que já exigiu correção de 15% a 20% nos preços internacionais da Piccadilly, pode ter selado o destino caribenho. “Tudo dependerá da reação dos nossos clientes à tabela da nova coleção”, condiciona a diretora. A estreia na região também dará chance para recuperar terreno perdido. Em sete anos, a calçadista viu Estados Unidos e México despencarem na sua contabilidade. Os americanos estavam na segunda posição nas encomendas em 2003, e agora amargam o 36º lugar, enquanto os mexicanos saíram da terceira colocação para a 25º no mesmo período.
Polo gaúcho vira centro de inteligência
dos, Heitor Klein, opina que as empresas reduzem ou desativam a montagem dos artigos na terra natal, mas não eliminam o sapato inteiro. O dirigente observa que o polo gaúcho se firma cada vez mais como plataforma de desenvolvimento para lançar e ditar tendência e para gerir bem os negócios. “O Estado se consolida como centro de inteligência”, conceitua Klein, para quem o atual fluxo dificilmente tem volta e dá fôlego ao que ele diz ser a atual opção do governo brasileiro, de entre ser exportadora de commodity, em detrimento dos itens industrializados.
Para validar a tese do dirigente, a Schmidt Irmãos, com 100% da operação voltada ao exterior, desativou em março a montagem em Campo Bom, demitindo cerca de 200 empregados, mas manteve outros 200 ligados às áreas de design e modelagem, informa Juarez Flor, diretor do Sindicato dos Sapateiros do município. A atitude decorre da implantação de uma unidade em Manágua, capital da Nicarágua, em setembro do ano passado. Nenhum diretor da empresa foi encontrado para comentar a mudança. Para a entidade de sapateiros, os donos culparam o câmbio. A calçadista já teve 21 unidades no Estado, somando 3 mil empregados, compara Flor, que aponta a oferta de vagas no setor como contraponto que ameniza o efeito negativo das demissões.
No esforço além fronteiras, o fraco desempenho das exportações na largada do ano é um poderoso argumento para os departamentos financeiro e de comércio exterior das empresas revisarem posições. No primeiro trimestre, a receita global do setor ficou em US$ 356,7 milhões, com a venda de 32,7 milhões de pares, cifra 15,8% menor que a do mesmo período de 2010, cujo montante foi de US$ 423,6 milhões por 49,4 milhões de pares. O Estado, que responde por quase 50% da balança, vendeu 20,4% a menos, desenvoltura seguida pelo Ceará, segundo exportador, com 26,2% desse mercado.
Os maiores recuos (com dados disponíveis de janeiro a fevereiro) ocorrem justamente nos clientes mais assíduos, destacando-se a queda de 35% na conta americana e de quase 40% para o Reino Unido.
Fábricas podem vingar avanço de chineses nos Estados Unidos
Ao desembarcar em solo dominicano, a precursora Paquetá, de Sapiranga, buscou retomar mercados que já foram domínio dos brasileiros. Depois de oito meses em uma região de zona franca, com isenção de impostos, a gaúcha espicha planos e projeta para 2012 alcançar 3 milhões de pares. A meta dará impulso à fabricação global do grupo, prevista em 10 milhões de pares em 2011 e que poderá alcançar 13 milhões no ano que vem. “A decisão de migrar buscou a melhor alternativa, pois as dificuldades iam aumentar. Escolhemos um local para ter logisticamente mais velocidade e menor disputa de outros fabricantes”, define o diretor industrial Tobias Leist.
O retorno foi imediato. Leist enche a boca para se vangloriar que a unidade na República Dominicana, que exigiu aporte de R$ 10 milhões, já bateu a máquina industrial de baixo custo dos chineses. “Conseguimos ter produto pronto e entregue aos clientes americanos em seis dias. Os concorrentes da China levam 90 dias”, contrasta Leist. A indústria ainda confronta com a cotação da mão de obra brasileira, cujo salário bruto é estimado em US$ 800,00 e que tem se elevado devido ao aumento da produção e maior oferta de vagas sem volume de trabalhadores suficiente. No país caribenho, um empregado custa US$ 250,00 a US$ 300,00 mensais.
Antes de rumar à América Central, a Paquetá, que tem sete plantas entre o Estado e o Nordeste, percorreu a Argentina, onde produz há três anos. A aposta externa, somada ao bom momento das vendas internas, formam o alicerce para a Paquetá aumentar em 10% o faturamento em 2011, que foi de R$ 1,7 bilhão no ano passado.
Indústria de componentes segue o caminho trilhado pelos fabricantes
Se o fabricante de calçado vai para a América Central, o jeito é a indústria de componentes seguir a trilha. A gaúcha Artecola já tinha rezado a cartilha nos anos de 1980 quando as calçadistas sulinas migraram ao Nordeste. “Fomos a primeira a abrir unidade na região, comprando uma planta em Campina Grande, na Paraíba”, conta Lisiane Kunst, diretora de exportação da empresa. Na década de 1990, a indústria, com sede em Campo Bom, montou um centro de distribuição na Argentina, onde no começo dos anos 2000, adquiriu uma unidade. O avanço externo preparou o campo para novos passos. Em 2009, o alvo foram fábricas no México e na Colômbia, todas fornecedoras hoje das indústrias implantadas na República Dominicana e na Nicarágua.
“A migração não é só na indústria de calçado. Ocorre no mundo todo em busca de menor custo de insumos em setores intensivos em mão de obra”, aponta Lisiane. Os laminados vendidos a Schmidt Irmãos são oriundos da linha mexicana. Segundo a diretora, a estratégia definida pelo grupo, que tem 27% da receita alimentada pelo setor de calçados, é estar próximo do cliente. “Para onde ele vai, a cadeia de insumos vai junto”, resume. Hoje, 330 dos 1,9 mil empregados atuam em plantas que fabricam componentes de sapatos. No exterior, 45% da operação é movida pela cadeia do calçado. A ação da gaúcha é responsável por manter os planos globais de avançar 34% na receita bruta em 2011, chegando a US$ 300 milhões, sendo 30% obtidos na operação externa.
O movimento da empresa que dirige serve de exemplo para orientar associadas à Associação Brasileira de Empresas de Componentes para Couro, Calçados e Artefatos (Assintecal). Lisiane, que é diretora da entidade, adverte que os fabricantes finais não têm escolha, a não ser se posicionar lá fora. “É uma questão de sobrevivência”. Por isso, a dirigente ressalta que a associação tem criado programas de capacitação e incentivado as empresas do setor a se inserirem no exterior. “Melhor do que regredir e fechar aqui”, contrapõe.
Fonte: Jornal do Comércio - RS