“Quase trinta anos depois do surgimento desse movimento que ficou conhecido como novo sindicalismo, uma pesquisadora adentrou uma dessas fábricas e se propôs a analisar o que aconteceu com aqueles trabalhadores depois das transformações ocorridas no processo produtivo e nas relações de trabalho a partir dos anos 90”. Este é um trecho do prefácio assinado pelos professores Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins (FELCH-USP) e Iram Jácome Rodriges (FEA-USP) do livro “Ser metalúrgico no ABC – Transmissão e herança da cultura operária entre duas gerações de trabalhadores”.
A pesquisadora em questão, que entrou durante muitos dias seguidos na Mercedes-Benz, do ABC paulista, é Kimi Tomizaki, professora da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), que lançou o livro “Ser metalúrgico no ABC”, em São Paulo, recentemente. Ela conversou com a coluna Debate Sindical sobre as principais conclusões da sua pesquisa.
Debate Sindical – O que a você quis estudar e mostrar com esse trabalho? Kimi Tomizaki – A proposta do meu livro é fazer a comparação entre duas gerações: a geração que eu considero fundadora da identidade da categoria metalúrgica, que foi a geração que participou do período das grandes greves (no ABC Paulista); e a geração posterior da década de 90, que é a geração da reestruturação produtiva. Ao longo desse período que vai do final da década de 70 até o final da década de 90, os trabalhadores metalúrgicos vivenciaram um processo de ascensão econômica e política muito violenta. Em 1978 eles começam fazendo greve ainda no regime militar, e terminam a década de 90 tendo fundado o maior partido de esquerda (o PT – Partido dos Trabalhadores), cujo líder (Luiz Inácio Lula da Silva) é da categoria metalúrgica, e foi eleito Presidente da República, ao mesmo tempo eles têm altos ganhos salariais.
Debate Sindical – Como isso influenciou a geração seguinte? Kimi Tomizaki – Isso fez com que a geração seguinte acabasse se tornando praticamente meninos de classe média. Eles tiveram um nível de consumo de classe média. Eles tiveram uma vivência de bairro, moradia, acesso a brinquedos e a escolas de classe média. Entretanto, se vive, no ABC especificamente, um processo detonado pela reestruturação produtiva de fechamento de postos de trabalho. Então, da década de 70 à década de 90, quase 40 mil postos de trabalho foram fechados no grande ABC. O que significa que, embora esses meninos da segunda geração tenham mais qualificação, mais escolaridade, eles, na maioria das vezes, vão dar continuidade à condição operária dos seus pais. Isso era uma coisa que nem os pais esperavam e nem eles. Eles esperavam ascender, continuar um processo de ascensão que vinha já de uma geração anterior a dos seus pais.
Debate Sindical – Como? Kimi Tomizaki – Porque quem era metalúrgico na década de 70, normalmente veio da área rural. Pelos meus dados de pesquisa, o que temos é uma primeira geração de pais que vivia na roça, no interior de São Paulo, no Paraná e uma grande maioria do Nordeste, analfabetos, cujos filhos migraram para São Paulo, conseguiram se inserir no mercado de trabalho industrial, completaram seus estudos, a maior parte até a antiga oitava série, alguns continuaram e fizeram ensino médio e depois a graduação, mas em número menor, mas que deram um salto muito grande em termos de ascensão social de uma geração para outra. A minha pesquisa aponta que, em princípio, esses pais esperavam o mesmo para os filhos. Então, se ele era operário, ele queria um filho engenheiro. E isso não vai se concretizar.
Debate Sindical – Ele também vai ser operário? Kimi Tomizaki – Ele vai ser operário. Isso é um dos principais resultados da minha pesquisa. Atualmente, a gente tem um grupo muito grande de jovens trabalhadores que ainda luta para sair da fábrica. E nas entrevistas eles demonstram que ainda acreditam que estão passando pela fábrica temporariamente.
Debate Sindical – Como se fosse apenas um estágio para uma ascensão profissional maior? Kimi Tomizaki – Exatamente. Então, eles falam assim: “Olha, estou por enquanto aqui (na fábrica) até terminar a faculdade. E depois de terminar a faculdade eu vou embora e vou ser engenheiro”. Ou então, para pagar os estudos, o carro, a moto, porque eles têm valores de classe média. Mas alguns já perceberam que eles não vão conseguir sair da fábrica. Outros ainda são muito jovens para perceber isso, e eles só vão perceber isso na medida em que os anos vão passando.
Debate Sindical – O que isso significa? Kimi Tomizaki – Isso, para mim, pode representar tanto uma grande crise daqui a aproximadamente dez anos; como uma grande oportunidade de renascimento da identidade metalúrgica.
Debate Sindical – Não se perde, também, o vigor da luta sindical da geração anterior? Kimi Tomizaki – No momento, podemos dizer que o tônus está um pouco mais solto, sobretudo porque eles (os jovens trabalhadores da segunda geração depois das greves de 1978) já pegaram uma fábrica de grandes conquistas, que foi totalmente herdada da luta dos pais. Então, eles já conheceram uma Mercedes-Benz que tem um piso branco, que eles trabalham limpinhos, onde as áreas mais perigosas já foram todas robotizadas. Eles não sofrem acidentes graves de trabalho nem a realidade da super-exploração.
Debate Sindical – Será que essa realidade totalmente diferente da dos pais deles é um fator para eles não se organizarem? Kimi Tomizaki – Exatamente. Está tudo tão organizado, a Comissão de Fábrica já está lá dentro e já está lutando tanto que isso esmorece. Por outro lado, a pesquisa mostra que existe um descontentamento crescente com o posto de trabalho, porque eles se prepararam a vida toda para fazer outra coisa. E hoje você vai encontrar um jovem que está fazendo Engenharia montando caminhão, como montador, na linha de montagem, que é um grau mais baixo da fábrica, cujo pai não tinha nem o ensino médio e era ferramenteiro. Então, nem com mais escolaridade ele não consegue alcançar o que o pai fez. Então, eles estão vivendo um processo de declínio social, não de continuidade da ascensão social de uma geração para a outra. Isso, para mim, daqui a uns dez anos pode significar uma bomba.
Debate Sindical – Por que? Kimi Tomizaki – Porque quando a Mercedes-Benz estiver com uma linha de montagem feita só de engenheiros, jornalistas, administradores de empresa, entre outras profissões, o descontentamento desses jovens, percebendo que não vão sair da fábrica, pode ser canalizado para um revigoramento da categoria e do movimento operário, na medida em que eles aumentem o nível de exigência; ou para um esfacelamento e daí a minha provocação e discussão com o sindicato (dos Metalúrgicos do ABC) de que ele precisa estar preparado para este momento.
Debate Sindical – A história de luta dos pais está apenas no passado, é isso? Kimi Tomizaki – Não, os jovens trabalhadores têm até clareza (da luta dos metalúrgicos nas décadas de 70 e 80), mas a questão fundamental quando pensamos nas gerações é de que existe de fato uma diferença na maneira como eles sentem as experiências. Então, um jovem metalúrgico sabe o quanto a categoria dele lutou para chegar no nível que chegou, com o salário e com as condições de trabalho que tem. Ele tem consciência, mas ele não consegue sentir aquilo como o pai dele gostaria que ele sentisse. Então, os “velhos” têm uma reclamação constante, que é assim: os jovens acham que a Mercedes-Benz nasceu desse jeito, eles não reconhecem que a fábrica está desse jeito porque a gente lutou, porque muito companheiro foi demitido, muito companheiro ficou numa “lista negra” e nunca mais conseguiu um emprego no ABC. Eu discordo dessa reclamação. É que ninguém consegue sentir com a mesma intensidade a vivência de uma outra pessoa.
Debate Sindical – Qual a sua maior conclusão nesse trabalho? Kimi Tomizaki – Ficou para mim de mais forte em todo esse trabalho é que toda a sociedade depende de um encadeamento entre as gerações e de um nível de solidariedade entre as gerações. De forma que os mais velhos devem ter uma boa-vontade com os mais jovens, ensinando e conduzindo até um certo ponto, mas ao mesmo tempo aceitando que a medida em que geração cresce a outra morre. Se não morre fisicamente, ela morre socialmente, politicamente e simbolicamente. E a nova geração para ser bem-sucedida precisa considerar os feitos da primeira geração, ainda que ela não possa sentir as mesmas coisas, ela tem de respeitar. Esse jogo entre gerações tem de ser baseado numa solidariedade. Entretanto, existe uma coisa que pode destruir a solidariedade entre as gerações que são crises estruturais. Por exemplo, a falta de emprego. Isso conduz a um embate entre as gerações pela falta ou ausência de alguma coisa. Ser generoso com a outra geração e respeitar a geração anterior, não é uma coisa que só depende do conjunto geracional, depende também das condições macro, econômicas e sociais. Então, se você passa por um período de esgarçamento do tecido social a tendência que as gerações se confrontem é maior. |
O movimento sindical do ABC 30 anos depois
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