Quinta, 02 Mai 2024

Nas inúmeras comemorações do segundo centenário da “abertura dos portos”, viu-se a repetição de mitos enraizados no folclore brasileiro, entre os quais a importância do Visconde de Cairu para convencer o regente quanto à decisão. E, no entanto, é difícil imaginar qual poderia ser a decisão alternativa do futuro dom João VI. A peça mestra do “aparelhamento de sucção do Estado” português era a exploração do exclusivo colonial, que dependia da intermediação, pelo entreposto comercial metropolitano, dos fluxos de comércio entre a colônia e a economia mundial. Na falta da metrópole, ocupada pelo Exército francês, a única alternativa à abertura dos portos seria a impensável paralisação do comércio exterior da colônia. Os reais responsáveis pela abertura comercial brasileira em 1808 foram, portanto, no plano estratégico, Napoleão Bonaparte e, na execução, o general Jean-Andoche Junot, comandante das tropas que ocuparam Portugal por alguns meses em 1807-1808 até a derrota de Vimeiro ante os britânicos, que redundou na Convenção de Sintra, sobre a evacuação dos invasores. É ilusório supor que Portugal e, depois, o jovem Brasil independente dispusessem de graus de liberdade que simplesmente não existiam.

Cairu era, de fato, liberal e talvez tenha tido alguma influência marginal nas “negociações” comerciais que resultaram no tratado anglo-português de 1810, que fixou a tarifa máxima em 15% ad valorem e implicou preferência temporária favorecendo os produtos britânicos. A despeito do que freqüentemente se argumenta, os possíveis prejuízos para o Brasil advindos do tratado de 1810, e sua extensão em 1827, têm pouco que ver com o suposto impacto desfavorável sobre a produção doméstica competitiva com importações. Decorreram, sim, em grande medida, das restrições à capacidade de arrecadar do Estado, dada a importância da receita dos impostos de importação. Só com a expiração do tratado Brasil-Grã-Bretanha, na década de 1840, foi, de fato, possível equacionar as finanças do jovem Estado brasileiro.

A partir da metade do século 19, as tarifas de importação foram gradativamente aumentadas até alcançarem níveis médios de 50% ad valorem. A economia brasileira esteve por muito tempo entre as mais protegidas do mundo. O custo de manter tal política era relativamente baixo, pois o aumento dos custos de produção não resultava em contração das exportações. Isso decorria da baixa sensibilidade da demanda ao aumento dos preços do café e da borracha e, no caso do café, à folgada margem competitiva brasileira, muito ajudada pelos efeitos da ferrugem, que eliminou por muitos anos a ameaça competitiva asiática.

Esse “fechamento dos portos” se enraizou e, juntamente com a pesada participação do Estado - tanto normativa, quanto na produção de bens e serviços -, foi peça fundamental da estratégia de crescimento rápido no meio século, a partir de 1930. Mas o modelo baseado na distribuição de benesses públicas implicou persistente desequilíbrio das contas públicas e se esgotou. Durante um quarto de século, a partir de 1980, a renda per capita brasileira praticamente se estagnou. Os processos de abertura comercial, privatização, arrumação das contas públicas e controle da inflação foram lentos, em meio à resistência dos interesses prejudicados. Mesmo agora, no limiar do que pode ser a gradativa retomada de uma trajetória de rápido crescimento, com maior integração à economia mundial globalizada, reemergem concepções saudosistas do modelo autárquico.

A realidade da globalização se impõe às vezes de forma surpreendente. Abarca fluxos de bens e fatores de produção. Talvez evidências anedóticas ilustrem melhor o argumento do que grandes elucubrações.

Recentemente, andei algumas semanas em busca de documentos sobre a história financeira do Brasil, em Londres. Os arquivos importantes são do Banco da Inglaterra e de N. M. Rothschild & Sons, na City. Perto dali, na mítica Lombard Street, está St. Mary Woolnoth, igreja de Hawksmoor, celebrizada nos versos de T. S. Eliott, no poema Terra Desolada (Wasteland): “E cada homem fincava o olhar adiante de seus pés/ Galgava a colina e percorria a King William Street/ Até onde Saint Mary Woolnoth marcava as horas/ Com um dobre surdo ao fim da nona badalada” (tradução de Ivan Junqueira). Acostumei-me a apreciar a igreja, à espera da abertura dos arquivos. Na última visita ao arquivo Rothschild apurei o ouvido e reconheci um diálogo entre compatriotas. Ao lado da motocicleta, um rapaz vendia uma quentinha ao operário da construção civil. Intrigado, perguntei ao motociclista quantos brasileiros trabalhavam em frente, na reforma do prédio Lloyds Bank, último banco a abandonar a Lombard Street. Pelo menos 15, assegurou-me, embora contasse com outros operários estrangeiros como clientes.

Não é sem ironia que, a dois passos da sede de N. M. Rothschild & Sons, que orquestrou por muitas décadas a mobilização dos capitais estrangeiros que ingressaram no Brasil, houvesse explicitação tão cabal de que, apesar de todas as restrições, para muitos brasileiros o mercado de trabalho hoje é globalizado e que essa mão-de-obra demanda serviços providos por brasileiros.

A inexorabilidade da globalização, a despeito de crises ocasionais na economia mundial, deveria ser reconhecida como dado na gestação de políticas públicas no País, ao invés de reincidir-se em resistir à reabertura dos portos iniciada na década passada.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

Fonte: O Estado de S.Paulo - 11 FEV 08

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