O mundo se volta, tarde ou não, para os assuntos do Meio Ambiente. Muito se tem falado em “aquecimento global”, “escassez de água”. Enquanto se discute o tema, a poluição e seus diversos e vários danos ambientais continuam acontecendo. É o caso dos portos. Para o professor Luciano Pereira de Souza, da Universidade Santa Cecília (Unisanta), em entrevista exclusiva ao PortoGente, existe a necessidade de transparência e possibilidade de participação da população na tomada de certas decisões que envolvem riscos ambientais.
O tema também foi tratado no XXII Eneph (Encontro Nacional de Entidades Portuárias e Hidroviárias), realizado na última semana em Maceió (AL). Roberto Roche, do setor de Análise de Risco e Gestão Ambiental da Roberto Roche & Associados, disse que os portos brasileiros não têm um especialista em negociação ambiental.
Com ou sem especialista, os problemas ambientais de cidades que abrigam portos se avolumam e são, em grande parte, desconhecidos da própria população. Em Santos, como observa o professor, que escreveu o livro Lições de Direito Ambiental, junto com o Desembargador e Corregedor do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Gilberto Passos de Freitas, um dos membros da comissão que elaborou o anteprojeto da Lei dos Crimes Ambientais, que se transformou na Lei nº 9.605/98, diz que desconhece, em Santos, um plano de gestão, um inventário de resíduos sólidos e de um local adequado dentro das instalações portuárias para a destinação final desse material.
Souza cita, como um problema sério da região, as fortes “evidências de poluição do leito do estuário por metais pesados, provenientes possivelmente do pólo industrial de Cubatão”.
PortoGente - Como o senhor definiria Direito Ambiental numa área portuária?
Prof. Luciano – O direito ambiental sofreu grande expansão, pois abrange não somente o ambiente natural – ecossistemas marinhos, estuarinos, praias, etc – como também o ambiente urbano, o patrimônio cultural e o ambiente do trabalho. A atividade portuária, como em geral as demais atividades produtivas, gera impactos no ambiente natural e urbano. Além disso, as condições de segurança e higiene dos trabalhadores portuários devem ser disciplinadas para preservar a saúde e a vida.
PortoGente - Quais os tipos de poluição ambiental envolvidos no ambiente portuário e seu entorno?
Prof. Luciano – Em geral, pois não estamos nos referindo a qualquer instalação portuária em especial ou ao tipo de atividade realizada no local, a poluição marítima, seja causada por acidentes com vazamentos de produtos perigosos ou de óleo combustível, seja causada por um acúmulo lento e gradual de certas substâncias como metais, seja pela contaminação com agentes biológicos ou patogênicos. Além disso, poderá haver poluição atmosférica, especialmente sob a forma de emissão de odores desagradáveis que afetam as pessoas, suspensão de materiais particulados em razão da grande movimentação de veículos terrestres nas vias de acesso ao porto. Há, também, impactos ao ambiente natural como a supressão de vegetação nativa – manguezais, por exemplo – para a construção de instalações portuárias e a expansão física das atividades.
PortoGente - O Direito Ambiental tem alguma área específica que trata de portos? O que existe em termos de legislação nesse sentido?
Prof. Luciano – Não conhecemos uma área denominada direito ambiental portuário. Mas vimos, em razão dos diversos impactos que a atividade portuária pode causar, que o direito ambiental tem grande aplicação como também outros ramos do Direito.
Desde a obtenção de licenças para a instalação e funcionamento de atividades, passando pela fiscalização dessas atividades, pela repressão de condutas ilegais e reparação de eventuais danos individuais ou à coletividade, há a necessidade de se observar preceitos legais, seja por parte dos agentes da Administração Pública, seja pelos empreendedores das atividades. Portanto, pode-se dizer que há um universo normativo que disciplina a atividade portuária e se dirige aos sujeitos nela envolvidos de alguma forma. Destacamos as Leis Federais 6938/81, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente, e a Lei 9966/2000, que dispõe sobre prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional, sem prejuízo de centenas de atos normativos.
PortoGente - Como a cidade de Santos, que abriga o maior porto da América Latina, deve se proteger ambientalmente?
Prof. Luciano – Exigência de licenciamento ambiental e estudo de impacto ambiental, nas hipóteses legais. Existência de instalações ou meios adequados para o recebimento e tratamento dos diversos tipos de resíduos e para o combate da poluição, de acordo com o órgão ambiental competente. Elaboração de manual de procedimentos para o gerenciamento dos riscos de poluição e dos diversos resíduos gerados ou provenientes das atividades de movimentação e armazenamento, aprovado pelo órgão ambiental competente. Elaboração de Planos individuais de emergência para o combate à poluição, aprovados e devidamente consolidados pelos órgãos competentes. Auditorias ambientais regulares, e independentes. Fiscalização regular pelos órgãos competentes, na área ambiental, laboral e de saúde pública (vigilância sanitária). Transparência e possibilidade de participação da população na tomada de certas decisões envolvendo riscos ambientais. Controle da poluição (atmosférica, sonora) e dos impactos urbanos (segurança e fluidez viária) causados pelo tráfego de veículos nas vias terrestres de acesso ao porto. Entre outras.
PortoGente - Quais os tipos de problemas ambientais que o senhor identifica na cidade provenientes do Porto de Santos?
Prof. Luciano – Atualmente, na condição de mero cidadão observador, poderia citar a questão da dragagem do porto, tendo em vista as evidências de poluição do leito do estuário por metais pesados, provenientes possivelmente do pólo industrial de Cubatão. Além disso, a questão da destinação final dos resíduos sólidos provenientes das embarcações que atracam no porto, pois desconheço a existência de um plano de gestão, um inventário de resíduos e de um local adequado dentro das instalações portuárias para a destinação final desses resíduos.
PortoGente - Como resolvê-los?
Prof. Luciano – É uma questão muito complexa, penso eu, que envolve uma abordagem técnica, econômica, jurídica, com muitos profissionais envolvidos.
PortoGente - Existe muita polêmica sobre a competência legal de licenciamento (esfera estadual ou federal) entre os órgãos ambientais. Como superar esses conflitos para agilizar o processo sem enfraquecer a defesa ambiental?
Prof. Luciano – Bom, esta é uma questão que não se refere necessariamente à questão ambiental portuária. Em princípio, toda atividade (estabelecimentos novos, processo novo, alteração de processo, acréscimos quantitativos na produção e na área de produção etc.) que possa ter algum impacto ao meio ambiente depende de prévio licenciamento. Como as três esferas de governo possuem competência em matéria de proteção ambiental, inclusa a competência de licenciar atividades, penso que deve haver uma certa distribuição de competência entre os órgãos municipais (desde que devidamente organizados), estaduais e federais para o licenciamento ambiental, inclusive para evitar a sobrecarga de atribuições e que pode levar a uma certa ineficiência do serviço, como nos revela a experiência comum. Todavia, seguindo a regra de ouro do direito ambiental in dubio pro ambiente, é preciso definir com muito critério, permitir superposições de esferas governamentais em alguns casos e até a avocação de competência, se necessário.
PortoGente - Na sua opinião, como deve ser o tratamento de efluentes líquidos provenientes das atividades dos terminais de granéis líquidos? O que existe é satisfatório?
Prof. Luciano – Tecnicamente não sei responder. Mas além das condições de segurança da estocagem, com os sistemas de contenção de vazamentos adequados, é preciso que os efluentes provenientes de lavagens de tanques, se despejados na rede coletora pública, estejam dentro dos padrões de emissão estabelecidos pelas normativas mais restritivas (atos infra-legais estaduais ou federais). Não podem ser lançados in natura nos corpos d’’água, pois isto é vedado por lei. Portanto, se houver autorização para o descarte em corpos receptores, de acordo com a classificação da água, o padrão de qualidade e o padrão de emissão, resulta que estes efluentes devem ser tratados para atingir os padrões de emissão mais restritivos fixados na legislação, depois, deve haver o monitoramento constante do corpo receptor, pois mesmo o lançamento dentro dos padrões de emissão, não pode dar causa a uma degradação dos padrões de qualidade fixados para o corpo receptor específico, que recebe os efluentes. Em linhas gerais, estes critérios servem para qualquer emissão de efluentes.
PortoGente - Uma grande polêmica, que envolve a questão ambiental também, é a dragagem de manutenção da profundidade do Estuário no canal e berços de atracação. Como o senhor vê essa polêmica?
Prof. Luciano – Com relação à dragagem, mais uma vez, manifesto-me na condição de cidadão observador, que basicamente acompanha o assunto pela grande mídia. Considerando que há metal pesado acumulado no leito do estuário, que este metal não foi produzido no porto, mas trazido, por assim dizer; considerando ainda, que a dragagem é necessária para que navios de maior calado ingressem no porto, e ainda, que não temos um super fundo, como nos Estados Unidos, que poderia proceder a descontaminação do leito e, depois, cobrar dos responsáveis, então a dragagem se mostra inevitável, pelo menos no cenário atual.
Diante disso, e sabendo pela experiência comum que ao se revolver o leito de um corpo d’água, muito material particulado ficará em suspensão (inclusive metais pesados e compostos contendo estes metais), e que este material pode ser incorporado à cadeia ecológica por organismos filtradores, que depois são ingeridos por seus predadores naturais, sofrendo um processo chamado bioconcentração, então penso que o ideal seria dragar evitando-se revolver o leito. Não sei qual a solução técnica, imagino que talvez a sucção do lodo seja a forma ideal, o que não basta, pois é preciso que a solução, além do mais, seja viável tecnicamente e economicamente.... Penso, entretanto, que devem ser empreendidos estudos constantes sobre esta questão, que ela deve ser fomentada nas universidades locais, pois a evolução tecnológica pode oferecer uma resposta adequada.
Da mesma forma, quanto ao lodo recolhido, considerando que este material contaminado por metais pesados, penso que o ideal seria recolher o lodo, descontaminá-lo, para pode devolvê-lo novamente ao ambiente natural. Aqui também valem as reflexões acima, sobre a eventual necessidade e viabilidade técnica e econômica do tratamento desse material extraído do fundo do estuário.
PortoGente - Qual é o perigo da água de lastro dos navios para a cidade?
Prof. Luciano – Considerando que a água de lastro é captada em um porto de origem, com o navio vazio e depois é despejada, nas águas de um porto de destino, para ceder lugar à carga que o navio deverá transportar, então é previsível que a água de lastro provoque uma dispersão de organismos vivos que não poderiam vencer as barreiras espaciais que os isolam da comunidade biológica desse porto de destino. Isto pode ocorrer com organismos inofensivos, que não têm capacidade para se adaptar ao novo ambiente em que foram introduzidos, mas também pode ocorrer com organismos pré-adaptados ao novo ambiente, o que pode geram uma bio-invasão com conseqüências imprevisíveis. Portanto, é preciso estudar a história vital, a biologia reprodutiva, a fisiologia e o comportamento ecológico desses organismos, bem como sua distribuição geográfica, para evitar problemas ambientais ou mesmo de saúde pública. O conhecimento científico adequado pode revelar os riscos reais e não meramente potenciais dessa “globalização” da água de lastro. Antes que estes estudos sejam realizados, penso que deve valer o in dubio pro ambiente.
PortoGente - O senhor vê com tranqüilidade, na área ambiental para Santos e outras cidades vizinhas, projetos e planejamentos de expansão portuária?
Prof. Luciano – Não, em função das incertezas quanto aos impactos (ambientais, sociais, urbanos, econômicos...) gerados e eficiência das respectivas medidas mitigadoras e de compensação a serem propostas e implantadas. É uma questão que envolve estudos gigantescos. As universidades poderiam colaborar e colaboram – ecomanage, por exemplo – com pesquisas neste campo, ajudando na elaboração de modelos matemáticos, capazes de oferecer mais confiabilidade científica na previsibilidade de comportamento dos vários sistemas afetados pela expansão portuária.
PortoGente - Como conciliar a atividade econômica do Porto de Santos, e toda a logística envolvida, com a qualidade do meio ambiente para os cidadãos?
Prof. Luciano – A História responderá: a solução é empírica, com tentativas, acertos e erros, a resposta não está predefinida e não depende apenas da ciência/tecnologia, mas também de uma opção, um ato de escolha e de manifestação da vontade geral. Crescer até que ponto? E de que forma? Até que limite suportar ou tolerar os custos ambientais e sociais desse crescimento da atividade portuária em Santos? Isto envolve decisões políticas (locais, regionais, federais e quiçá internacionais), decisões empresariais dos agentes econômicos que exploram a atividade portuária e decisões dos trabalhadores nas áreas portuárias e fundamentalmente decisões da população afetada diretamente, na condição de detentora do direito ao um meio ambiente ecologicamente equilibrado e saudável, para atual e futuras gerações.