Entrevista com o consultor portuário Frederico Bussinger
No mês de aniversário de 130 anos do Porto de Santos, a coluna traz entrevistas com figuras importantes que pensam e atuam em prol do complexo portuário. Iniciamos essa conversa com o consultor portuário Frederico Bussinger, um grande conhecedor do maior porto da América Latina.
Sua relação com o complexo santista começou em 1992, quando atuava como secretário executivo do Ministério dos Transportes. Desde 1977 Bussinger está envolvido com o setor de transporte: “Só não trabalhei com aviação, mas atuei em metrô, ônibus, ferrovia, hidrovia e porto”. Foi também secretário de Transporte de São Paulo. “Porto para mim era um amor novo, mas depois de 30 anos envolvido com o Porto, virou no mínimo união estável”.
Bussinger realiza análises profundas sobre o setor que divulga na forma de artigos em veículos como A Tribuna (Santos) e a Agência Infra. “Procuro ajudar a entender e formar opinião – não sei se sou bem sucedido!”.
Ele defende o Landlord como melhor modelo de gestão para os portos. Sobre o processo de desestatização, afirma que as audiências públicas vão permitir ao público conhecer as ideias do governo e fazer contribuições ao processo. “Antes do Tarcísio de Freitas [ministro da Infraestrutura] se desincompatibilizar para ser candidato, dificilmente ocorre o processo. E eu espero que ele não saia mesmo: seria um grande equívoco”.
A ligação seca entre as duas margens do Porto (projeto do túnel), um dos importantes projetos aguardados na Baixada Santista é, segundo ele, muito mais importante para a região metropolitana do que para o Porto. “Pois o que deve presidir a discussão é o interesse das áreas urbanas, a questão do tráfego intenso entre Santos e Guarujá, de toda a região da Baixada Santista”.
O grande problema do Porto de Santos é a ferradura, o acesso ferroviário aos terminais, arrendamentos e TUPs, alerta. “Se isso não for resolvido adequadamente, a carga não vai chegar. Ou, se chegar, chega a um preço exorbitante”.
Ao analisar os avanços que colaboraram para o desenvolvimento do Porto até hoje, ele afirma: “É a constância das diretrizes gerais que dá a grande solidez do setor portuário”. Sobre a relação porto-cidade, “de amor e ódio”, indica uma solução: ser equacionada com um Conselho de Autoridade Portuária (CAP), plural, representativo e deliberativo.
Como começou a sua história com o Porto de Santos?
Eu fui diretor de gestão portuária. Com a Lei dos Portos, em 1993 essa diretoria passou a ser quase de novos negócios, dos novos projetos. Havia muita autonomia – se resolvia tudo por aqui, razão pela qual houve semana em que fizemos quatro licitações.
Em Santos atuei de 1995 a 1998. Foi o período de implantação da Lei dos Portos e primeiros arrendamentos. Um período muito movimentado do Porto e muito interessante por causa da pluralidade de ideias, projetos, iniciativas da Autoridade Portuária e comunidade, uma época de ouro do Porto. Houve outras épocas marcantes, e quando olho para traz, pergunto como foi possível fazer aquilo tudo lá. A maior parte dos arrendamentos de hoje foram assinados lá, e 25 anos depois os contratos duram até hoje, como o da Santos Brasil, Cargill, terminais na Alamoa, da Ponta da Praia, da Libra (que, recentemente, virou Celulose).
A mudança do regime de horário dos trabalhadores no Porto, que vigorou por um século, foi possível fazer: aí o Porto passou a funcionar 24 horas por dia, com sincronia dos horários, quatro turnos e pessoal cobrindo todo o turno. Isso significou no aumento do número de berços, em 70% a 80% de produtividade, e acabou com a fila de navios. Em 1995 tinha-se navio com seis semanas de espera, e esse fenômeno não existe mais.
Que mudanças estruturais os portos mais desenvolvidos fizeram para se tornarem referência no mundo?
Andei por muitos portos pelo mundo, conheci 40 portos na Europa, e também nos EUA, Rússia, China, Japão, Singapura, Malásia. Mais velho que porto, só exército e igreja. O modelo de porto organizado, Landlord, tem 800 anos. Os portos têm sido transformados e desenvolvidos em muitos anos, como camadas geológicas, há 40, 50 e 100 gerações de pessoas que trabalharam neste setor.
O modelo Landlord não é apenas um modelo europeu: ao longo desses 8 séculos houve contribuição de americanos, africanos, asiáticos. Não estamos inventando a roda, e os portos são assim por que vieram se transformando. O que mais faz um porto ser o que ser é a constância dele. O modelo Landlord, que foi concebido e implantando em 1226, em Hamburgo, separa as administradoras (pública) da operação portuária (privada).
Ao contrário de muitos outros setores, é a constância das diretrizes gerais que dá a grande solidez do setor portuário. Ao longo dos 800 anos a tecnologia mudou, o modelo sofreu mudanças, e elas continuam: ele tem uma dimensão conservadora e outra inovadora.
Um dos grandes impulsionadores de reforma nos portos foi o movimento da globalização, guiado por Thatcher e Reagan. A abertura dos comércios mudou a relação entre países, o mercado e a demanda sobre os portos, antes fronteiras fechadas, quando a movimentação portuária era pequena. Com a mudança dos padrões internacionais, em 11 de setembro houve mudança das regras de segurança. O grande fenômeno que demarcou as mudanças foi a globalização, a abertura para o aumento do comércio, fluxo marítimo e demanda portuária.
Você pode ter desequilíbrios sazonais, mas para importar um dólar, precisa exportar. Assim, a pressão sobre os portos é dobrada. Um dos drivers [direcionadores] das reformas dos anos 1990 foi justamente a globalização.
Parodiando Milton Nascimento, “a carga vai aonde o povo está”. Não existe apagão logístico, pois a carga chega se há demanda. A logística está sempre se transformando, e hoje é o just in time, onde as empresas passaram a ter pouco estoque, e parte da crise de containers ocorre por conta do just in time.
Como você vê a história do Porto em termos de desenvolvimento (modernização, crescimento)? Quais mudanças ou marcos foram fundamentais na sua avaliação?
O tema movimentação portuária vem do século 16 na Baixada. 130 anos é o tempo de concessão do Porto organizado. O Porto foi criado primeiro em São Vicente, mas ele era desabrigado, era um porto de trapiche, de açúcar, escravos, tinha engenho, era a economia que movimentava. Só um tempo depois começou a desembarcar maiores navios, pois precisava-se ter águas com maior profundidade, então o Porto foi mudando para o estuário de Santos.
No final do século 19 foi feita a concessão da Companhia Docas de Santos. São 130 anos da concessão, mas o Porto tem mais de 400 anos, e esse porto teve vários momentos. No final do Século XIX foi feita uma lei, uma licitação inovadora: em uma época em que o imperador fazia concessões, o caso de Santos foi pioneiro, pois se criou uma sociedade de propósito específica com a companhia Docas. Foi um novo período de infraestrutura com a Parceria Público Privada (PPP) no Brasil. Foi feito o contrato e o Porto cresceu, vieram as ferrovias: São Paulo Railway e a Sorocabana, e essa associação de porto e ferrovia foi fantástica. No interior de São Paulo, quando não havia rodovia, não havia café, a expansão do café em São Paulo deve muito, assim como o açúcar, às reformas portuárias nos anos 90, e a brutal expansão se deve à reforma portuária. A concessão do Porto foi no final dos anos 1800, houve a chegada da ferrovia, o ciclo do café que durou muito, e as reformas portuárias dos anos 1990. É uma história de desenvolvimento contínua.
Que modos de gestão você considera que colaboraram para o desenvolvimento do Porto?
O Landlord Port é o mais indicado. Acho esquisito falar-se em desestatização, pois as operações portuárias já são hoje 100% privatizadas. Acho ótimo que seja liberada a consulta pública do processo de desestatização, pois até agora só nos baseamos em discursos de mídias sociais, e o governo mostrar que o que ele está fazendo pensando é da maior importância.
No Espírito Santo teve quase judicialização do processo, pois o TCU recebeu a documentação sob sigilo, e isso tinha que ser divulgado desde o início. No caso de Santos, o que se sabe é apenas o que o Ministério da Infraestrutura fala: não se tem documento. Com a divulgação var ser possível analisar. Qualquer pessoa pode fazer contribuição ao processo. O governo pode fazer o número de audiências que quiser, uma ou duas, com a população. A Antaq tem que responder às contribuições, pois o processo tem dimensão pública e política, e depende da atuação das pressões dos interesses e setores. Sobre o que se desdobra daí não se tem muito controle: o TCU precisa se manifestar, e ele não tem prazo. No caso da Codesa, teve tanta crítica que gerou uma segunda audiência.
O que se sabe sobre a desestatização de Santos, é que o prazo irá até o início de março; a audiência pública deve ser marcada para fevereiro, abre-se o período para contribuições, faz-se modificações (que devem ser mínimas) e manda-se para o TCU. Daí não tem cronograma. O leilão tem uma data indicativa, conforme a linha do desejo do governo. No meio disso tem que se analisar as contribuições, o TCU precisa aprovar, e se o Tarcísio [Tarcísio de Freitas, ministro da Infraestrutura] for candidato, isso também interfere. Antes do Tarcísio sair candidato, dificilmente ocorre o processo de desestatização, e eu espero, mesmo, que ele não saia, seria um grande equívoco.
No processo de desestatização não estamos discutindo operação, é importante deixar isso claro, pois a operação já é privada: o que estamos discutindo é função de Autoridade Portuária, e ela é “imprivatizável”: ela está sendo centralizada no governo federal, Assim, resta a administração portuária; que é o centro do processo. Além disso, o governo assina um contrato da dragagem; então vai sobrar o que? O que vai, efetivamente, ser privatizado? Boa pergunta.
Você acredita que o processo de desestatização vá ocorrer? Como avalia o processo e a proposta do governo?
Por ora, desconhece-se a proposta do governo – intenção, sim. A proposta vamos conhecer. No Espírito Santo foi postergado muitas vezes. Não dá para falar sobre a proposta ainda.
Você avalia que o Conselho da Autoridade Portuária (CAP) pode voltar a ser deliberativo?
O CAP deve ser deliberativo, ter configuração diferente de antes, que era distorcida. Mas acho que um colegiado que represente a comunidade é mais do que importante nesse governo. Mas, por tudo que ele fez até agora, diria que não fará isso.
Que projetos de infraestrutura foram mais marcantes para o Porto e quais são imprescindíveis?
Cada projeto ao seu tempo desempenhou um papel importante, como as ferrovias, um terminal de contêineres específico, a implantação da rodovia e acessos importantes, a montagem de parque de petróleo e derivados, o aprofundamento do canal. Tem uma planta do Porto que indica que ali perto da alfândega tinha seis pés. Ou seja, tudo que há hoje foi ação humana para existir o Porto que existe hoje. Sem a rodovia Piaçaguera não haveria margem esquerda do Porto, não haveria a Cargill, o terminal de fertilizantes, a própria DPW, sem ela não teria o porto em Guarujá ou Cubatão.
Qual a importância de uma dragagem eficiente a curto e longo prazo para o Porto?
Grandes navios, um tema polêmico no mundo todo. Passa a ideia de que todo porto precisa ter grandes navios, a rede mundial está cada vez mais concentrada em alguns portos. Hoje os portos da Escandinávia têm portos que são feeders: a Escandinávia já foi o centro de navegação com os vikings, tinha grande grandes portos para a época, eles não querem ser porto concentrador, a própria Inglaterra perdeu essa condição. Los Angeles, Xangai, é concentrador, ou os portos, brasileiros, o porto de Tubarão, no Espírito Santo, o porto de Maranhão. O Porto de Santos já é concentrador, já é hub, é o principal do Brasil, da América Latina. A discussão é que as empresas de navegação querem aumentar navios para diminuir custos, falava-se em navios com 6 mil contêineres, hoje tem navio que comporta até 23 mil. Este é um interesse dos armadores, mas os portos precisam ser capacitados para isso, passar de 14m pra 15m, 17m de calado, e a discussão que se tem no mundo agora é quem paga a conta: armadores investem em navios grandes, reduzem custos. Os portos fazem investimento, e como amortizam esses investimentos e têm lucros? Não é uma discussão simples quem paga a conta. Não é problema de Santos, é do mundo todo.
Como você avalia a possibilidade de o Porto contar com um projeto de ligação seca e como o projeto do túnel deve dialogar com o Porto e a cidade?
Essa ligação é muito mais importante para a região metropolitana do que para o Porto, pois o que deve presidir a discussão é o interesse das áreas urbanas, o deslocamento de contêineres vazios de lá para cá, a questão do tráfego intenso entre Santos e Guarujá, toda a região da Baixada Santista.
É a mesma discussão realizada em Santa Catarina, tem projeto [na região portuária de Itajaí pretende-se construir um túnel], e isso tudo é bastante importante. Na Baixada Santista tem algo pouco comentado: a ligação de balsa de Santos a Guarujá é das mais densas do mundo, e como está localizada na entrada do porto, o tráfego da ligação das balsas condiciona as entradas. Tem conflito entre entradas de balsa e navio, e quando você amplia e quer duplicar, o tráfego de navios tende a crescer, o conflito entre navio e balsa tende a aumentar. Se o Porto de Santos for ampliar como hub, haverá grandes navios, aumento do tráfego, então o Porto de Santos não vai crescer tanto como poderia. Para o Porto seria ótimo se não houvesse a balsa. Uma hora ele sai, não sei quando.
Na região, como avalia a relação entre Porto e Cidade? Quais os prós e os contras?
A relação entre porto e cidade no mundo todo é quase que esquizofrênica, pois boa parte das cidades do mundo nasceram ou se desenvolveram em torno do porto. O livro Navios Iluminados conta a história da pujança do Porto de Santos, uma cidade muito rica, a riqueza de Santos ligada ao café, à história do Porto.
Cidades usufruem e outras nasceram a partir do Porto, mas o drama é que a partir de um determinado momento, cria-se uma relação inversa, porque o porto cria riquezas, mas também problemas para o Porto. Há o efeito negativo do Porto da cidade, com trânsito, poluição na Ponta da Praia, fertilizantes, tem essas discussões permanentes das interferências do porto na cidade. Fui presidente do Porto em são Sebastiao, lá havia problema de poeira, às vezes não se via Ilhabela, um drama numa região tão natural, e o Porto foi multado na ocasião. Há uma relação de amor e ódio, o porto às vezes cria problemas, mas não é problema local, é mundial, e tem formas diferentes de resolver. Um modelo de gestão local administradora, onde tem CAP deliberativo, tem instância para resolver isso, quando tem gestão centralizada.
Quais aspectos serão fundamentais nos próximos anos para o crescimento e modernização do Porto (internet das coisas integração, logística inteligente, gestão de qualidade etc.)?
Quando se fala em internet das coisas, está se falando da economia 4.0, isso é natural que aconteça. Os terminais se modernizam rapidamente nisso, a evolução é natural e já está acontecendo. A iniciativa privada cuida disso adequadamente, todos têm projeto nessa linha, está indo bem.
O que acho que carecemos é de soluções básicas, e não adianta passar desodorante sem tomar banho. Qual o problema do Porto de Santos? Não é do Porto, é a ferradura, o acesso ferroviário do Porto de Santos. E se isso não for resolvido adequadamente, não vai ter carga para chegar, ou se chegar, chega a um preço exorbitante, tem que ter mudança estrutural no acesso do porto. Este é o maior problema do Porto de Santos, e sem isso, qualquer outro problema de terminal não avança. Gostaria que fosse diferente, mas eu acho que a cada dia fica mais distante o encaminhamento adequado. Isso não garante solução adequada: licitar por um lado a FIPS e renovar antecipadamente com a RMS não penso ser bom caminho. A solução deveria ser integrar todas as ferrovias, de acesso e dentro do Porto, mas aqui está fragmentando: parece caminhar-se na contramão. É preciso uma visão integrada.