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Osvaldo Agripino 
Advogado (UERJ, 1991) e Professor do Mestrado e Doutorado em Ciência Jurídica da Univali (Capes 6)

A fim de contribuir para o debate sobre o processo de desestatização portuária em curso no Brasil, especialmente das Autoridades Portuárias públicas, resolvi escrever esse Guia Básico de orientação para governos, Poder Legislativo, Poder Judiciário, instituições e sociedade civil, especialmente para as comunidades portuárias.

Esse Guia não pretende ser específico para o nosso país. É uma reflexão sincera de quem atua há quarenta anos no setor marítimo e portuário, quatro deles como piloto de navios mercantes, tendo operado em sessenta e cinco portos de vinte e sete países, a atua há trinta anos como advogado.

Tenho o privilégio de, há vinte anos como atuar como orientador de quarenta e uma dissertações de Mestrado e duas teses de Doutorado e ser autor de 150 artigos científicos publicados no Brasil e no exterior (Oxford University Press), a maioria deles voltada para solucionar problemas do setor.

É uma proposta honesta de Guia para ser global, principalmente para os países que possuem a forma tradicional de divisão de poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), desde que observadas as particularidades de cada Nação, pois nesse setor, não há uma solução one-size fits all-model. Nesse momento de crise global, a indiferença é uma forma de omissão. Portanto, façamos, cada um, a sua parte.

Acredito, ainda, que ele possa ser usado como um Manual de Sobrevivência por aqueles afetados pela retórica da “destruição criativa”, muito comum em tempos de políticas neoliberais em alguns países em desenvolvimento.

Isso ocorre, ao contrário do que fazem os desenvolvidos, que resgatam, cada vez mais, as funções de Estado e o papel da regulação setorial independente e autônoma, embora haja exceções, como a Austrália, que tem sido um fiasco, com críticas da academia, dos usuários, dos armadores, da autoridade antitruste e do Parlamento.

Regulation no Estados Unidos significa presença eficiente do Estado, e se reveste de forte caráter simbólico sobre o que é melhor para o interesse público da Nação.

O Guia possui alguns antídotos “genéricos” para combater o veneno que está na raiz da destruição portuária eventualmente existente em qualquer país, em parte fundado na crença de que o gestor público é ineficiente e corrupto, e o privado é eficiente e probo. Nem sempre.

Assim sendo, as dicas não se esgotam nessas breves notas, e cada uma demandaria um aprofundamento teórico, às vezes complexo, que não cabe aqui em função do espaço.

O Guia está dividido em quatro partes. A Parte I trata de dicas para o Poder Legislativo, o poder que representa a vontade popular da Nação. A Parte II é direcionada para o Poder Executivo, aquele que tem o poder de outorga e de criar as políticas públicas portuárias.

A Parte III é para o Poder Judiciário, competente para julgar os conflitos decorrentes das atividades portuárias, em demandas por privados ou por entes públicos e a Parte IV trata das dicas para a comunidade local e regional que sofre as externalidades das políticas portuárias.

Parte I – Poder Legislativo: 1. Ter sempre como “norte” para sua deliberação: (i) a violação do princípio da soberania logística (não é por acaso que ele é o primeiro fundamento da República, no art. 1º, inciso I, da nossa Constituição Federal) e (ii) os fins justificam os meios. 2. Ser omisso, através das suas comissões permanentes e temporárias de infraestrutura, portos e transportes, em relação às demandas das comunidades portuárias. 3. Aprovar legislação que proíba ou dificulte a descentralização da gestão portuária para os entes da federação. Se quiser prejudicar mais, suprimir o poder deliberativo dos conselhos portuários, especialmente dos portos organizados e não fiscalizar de forma permanente o que vem sendo feito pelos órgãos de Estado competentes para a regulação do setor portuário. 4. Aprovar a indicação do Poder Executivo para cargos de agências reguladoras que tenham competência direta ou indireta para a governança portuária, sem perfil técnico, sem experiência de pelo menos quinze anos no setor regulado e formação acadêmica adequada, e sempre privilegiar, e isso é muito importante, o indicado pelos partidos da base do governo, em detrimento daquele com perfil técnico e excelência exigidos para tais cargos. 5. Decidir sem ouvir os servidores que estão na ponta, os especialistas, a academia e os pesquisadores que publicam e pesquisam temas de interesse do setor portuário. 6. Confiar nos meios de comunicação não especializados no setor e nos que fazem lobby, sem conhecimento teórico e prático do “chão do porto”. 7. Se um normativo de uma agência reguladora contrariar algum interesse público, ainda que depois de discussão técnica com o setor “prejudicado”, não ser deferente à agência reguladora, ao contrário, aprovar lei regulando o tema para anular o que foi decidido por delegação para a agência especializada. Justificar sempre que essa é a melhor forma de violar o princípio constitucional da eficiência.

Parte II – Poder Executivo: 1. Centralizar as decisões no governo central, e aumentar essa centralização, gradativamente, na medida em que for maior o território do país. Para países continentais, o grau de centralização deve ser o máximo possível, ainda que sob o argumento que “é preciso conhecer melhor o setor”. 2. Ao elaborar as políticas públicas, não considerar a expertise, os casos exitosos dos modelos dos países com alto índice de eficiência na gestão portuária e a curva de aprendizado das comunidades portuárias afetadas. 3. Delegar as competências da Autoridade Portuária para a iniciativa privada, especialmente daquelas com gestão eficiente, não deficitárias, com alto índice de arrecadação de tributos e de desenvolvimento regional, e cujas comunidades demandam tais atribuições. 4. Não reconhecer as funções de Estado da Autoridade Portuária, e o fato de que elas foram feitas para solucionarem problemas em modelo existente há oitocentos anos na quase totalidade dos portos do mundo. 5. Nomear e permitir que nomeiem dirigentes para as Autoridades Portuárias sem perfil técnico e probidade para o cargo. 6. Privilegiar sempre o político e a tomada de decisão sem evidências científicas. 7. Não respeitar as decisões e os normativos das agências reguladoras que atuam direta ou indiretamente no setor portuário, especialmente aquelas embasadas em audiências públicas, estudos técnicos qualificados e que passaram pelo crivo do Poder Judiciário, quando esse tiver sido provocado por setores regulados que tiveram seus interesses afetados, portanto, o status quo, com base na atuação da agência. 8. Priorizar os interesses privados, especialmente quando esses alegam que há recursos para investimento no setor. 9. Privilegiar a assimetria de informação e não a transparência, afinal quanto menos luz solar, melhor para a destruição. 10. Permitir a concentração horizontal e a verticalização, especialmente quando o serviço portuário é operado por empresas e interesses transnacionais, e não observar a assimetria concorrencial no mercado regulado. 11. Destruir diretamente ou contribuir para que destruam, ainda que indiretamente, os requisitos da relação Porto-Cidade: (i) aspectos históricos; (ii) aspectos econômicos; (iii) aspectos sociopolíticos; (iv) meio ambiente; (v) acessos terrestres; (vi) urbanidade e (vii) instrumentos de planejamento.

Parte III – Poder Judiciário: 1. Não ser deferente aos atos normativos e às decisões das agências reguladoras, colegiados com poder deliberativo e normativos do Poder Executivo que se relacionem com a atividade portuária. 2. Decidir caso com pedido de liminar em demanda de um interesse privado afetado, sem analisar previamente a manifestação técnica da agência reguladora, dos órgãos públicos e das comunidades afetadas. 3. Privilegiar o argumento jurídico em detrimento do argumento técnico motivado em argumento jurídico. 4. Adotar o Jus-simplismo, ainda que sob a retórica do “argumento motivado”, especialmente quando a decisão exigir análise complexa, como é comum nas demandas do setor portuário. 5. Executar a seguinte estratégia hermenêutica para motivar as decisões: problemas complexos exigem soluções simples. 6. Julgar no modo “Decido como eu penso”, ou seja, ser adepto do solipsismo judicial, com base no princípio do livre convencimento do juiz.

Parte IV – Comunidade local e regional: 1. Não participar das políticas públicas que afetam a atividade portuária. 2. Privilegiar o interesse político-partidário, principalmente quando é de curto prazo e sem fundamento em evidência científica. 3. Participar da discussão das políticas públicas que afetam o setor, sem estudos técnicos qualificados. 4. Eleger políticos que sejam a favor da tomada de decisão, em política pública do setor portuário, sem evidência científica, que desqualifiquem as agências reguladoras e trabalhem para reduzir a sua autonomia e a independência, inclusive financeira. Esses são os melhores quando se trata de destruir o setor portuário.

Conclusão: esse Guia é uma obra aberta, com dicas “genéricas” que podem ser aperfeiçoadas. Elas podem ser ajustadas para, inclusive, destruir o transporte aquaviário. Assim, ainda é possível, diante de cada caso concreto, ser mais específico na dica para que a política de destruição seja mais eficaz. Todavia, é preciso que os interessados acima tenham cautela, pois se errarem na dose, ao aplicarem a dica, a destruição pretendida pode ser ineficaz.
Nesse caso, deve-se contratar um consultor especializado que não trabalhe com evidências, sem experiência no setor e que não considere os requisitos da relação Porto-Cidade. Afinal, na lição sábia do escritor Nelson Rodrigues: “Subdesenvolvimento é obra de séculos, não se improvisa”.

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