osvaldo agripino coluna
agripino@agripinoeferreira.com.br
 

O encalhe do mega porta-contêiner Ever Given, de 220.000 toneladas de porte bruto, no último dia 23 de março no Canal de Suez, no Egito, com o desencalhe em 29 de março, com valor alto de despesas extraordinárias, e a liberação do mesmo somente em 7 de julho de 2021, chamou a atenção do mundo inteiro, quiçá da comunidade do comércio internacional, em razão do seu caráter inusitado.

O valor inicial exigido pela Autoridade do Canal do Suez foi de US$ 916 milhões, mas o valor foi reduzido para algo em torno de US$ 550 milhões.

Seja pelos valores envolvidos em eventuais reparações de perdas e danos bilionárias, envolvendo múltiplos agentes, como a SCA (autoridade que administra o Canal de Suez), demais transportadores, seguradores, agentes intermediários, embarcadores etc. O impacto na cadeia logística é disseminado. Sem dúvidas, o sinistro será um leading case no Shipping Law.

Nesse cenário, a fim de contribuir para a segurança jurídica da logística marítima de comércio exterior do Brasil, poderíamos ter alguma lição? Vamos supor que o Ever Given viesse para um ou mais portos do País e houvesse a declaração de avaria grossa.

Nesse caso, caberiam as perguntas: o que é isso, a avaria grossa? Quais as medidas os usuários e NVOCCs devem e podem fazer? O caso possibilita algumas análises sobre quais providências deveriam ser tomadas pelos hipotéticos NVOCCs e importadores brasileiros a comporem os quase 20.000 TEU (unidade de contêiner de 20 pés de volume) que estavam a bordo.

Primeiramente devemos mencionar que o proprietário Shoei Kishen Kaisha (SKK) e não o armador-operador, Evergreen, por ter a posse através de um Bare Boat Charter Party, ou afretamento a casco nú, tomou uma medida na High Court Justice do Reino Unido para limitar o valor da indenização.

Essa estratégia, comum no Direito Marítimo, serve para centralizar na jurisdição inglesa todas as ações apresentadas pelos milhares de prejudicados com o sinistro, em relação aos danos à carga ou terceiros, que tiveram seus navios retidos por uma semana, que é o tempo que o canal ficou bloqueado.

Esses nacionais devem ser de países que ratificaram a Convenção Convention on Limitation of Liability for Maritime Claims 1976, emendada em 2012. Lembro que a LLMC vigora para os países que a ratificaram, o que não é o caso do Brasil, portanto, eventuais reclamações de interesses brasileiros em

tese não estão sujeitas à sua limitação, mas somente às particularidades do Direito Marítimo brasileiro.

No cotidiano da advocacia maritimista há três décadas, temos nos deparado com algumas dúvidas e questionamentos de operadores e usuários de transporte marítimo internacional acerca do pagamento da avaria grossa.

Como piloto de navios mercantes, pude constatar que a declaração de avaria grossa é uma das medidas mais comuns quando ocorrem despesas extraordinárias. Não vou tratar aqui das causas antecedentes da avaria grossa, a problemática da causa primária, pela falta de conclusões das investigações, nem de particularidades da limitação da responsabilidade civil, temas que fazem parte das minhas reflexões há mais de trinta anos.

De vez em quando, surgem consultas de NVOCCs e de importadores, com e sem seguro de transporte internacional de carga, surpreendidos com uma comunicação do armador para que efetue o pagamento, na conta do regulador de avarias designado, de determinado valor a título de avaria grossa.

Dentre as perguntas mais comuns, posso mencionar: “Avaria grossa? O que é isso? Como funciona? Devo pagar? Mas eu já paguei o frete? Depois que eu pagar, posso pedir o meu dinheiro de volta?”.

A fim de elucidar tais questionamentos, ainda que em breves notas, pois cada sinistro marítimo tem a sua complexidade e particularidades, diante de cada caso concreto e ainda sem conclusão das investigações oficiais do Ever Green, é que escrevo esse texto. Quais lições poderemos obter no que tange à Avaria Grossa?

O valor da avaria grossa decorre de um percentual da soma do custo da mercadoria e do frete para os membros da expedição marítima onde houve o sinistro que deu causa à declaração da avaria grossa.

O tema avaria no Direito Marítimo, seja simples ou grossa, é um dos que mais atormentam os operadores do transporte marítimo, mesmo os mais experientes, especialmente agentes intermediários, como NVOCCs e agentes de carga, assim como usuários. Há casos em que, embora declarada avaria “grossa”, trata-se na verdade de uma avaria “simples”.

Nesse cenário, tratarei aqui do tema, tão somente sob a ótica (percepção jurídica) da obrigação do NVOCC (Non Vessel Operator Common Carrier) e do embarcador.

Nos Estados Unidos, o NVOCC surgiu com a edição do Shipping Act de 1984, a fim de facilitar a operação de exportação do pequeno empresário para novos mercados. No Brasil, o primeiro embarque, por meio de um NVOCC, ocorreu em 1986, em um navio do extinto Lloyd Brasileiro.

Neste mesmo ano, a SUNAMAM editou a Resolução n° 9.608, de 4 de março de 1986, que reconheceu o NVOCC para facilitar o intercâmbio comercial entre EUA e Brasil. Em 2017, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários editou a Resolução Normativa n° 18, que define o NVOCC, como agente intermediário, no seu art. 2º, inciso II, alínea b, da seguinte forma:

Art. 2º Para os efeitos desta Norma são estabelecidas as seguintes definições: (...)

II - agente intermediário: todo aquele que intermedeia a operação de transporte entre o usuário e o transportador marítimo ou que representa o transportador marítimo efetivo, podendo ser:

b) transportador marítimo não operador de navios: a pessoa jurídica, conhecida como Non-Vessel Operating Common Carrier - NVOCC, que não sendo o armador ou proprietário de embarcação responsabiliza-se perante o usuário pela prestação do serviço de transporte, emitindo conhecimento de carga ou BL, agregado, house, filhote ou sub-master, e subcontratando um transportador marítimo efetivo; ou

Não é objetivo desse breve artigo, aprofundar o tema avaria grossa, mas tão somente introduzir a discussão em face das lições que o sinistro acima pode trazer, com a ressalva que quando a avaria grossa foi criada não havia a figura do NVOCC.

Assim sendo, pretende-se contribuir para orientar o NVOCC e o usuário brasileiros, caso o navio tivesse o Brasil como destino final, bem como discorrer sobre a problemática da avaria grossa.

Dois regimes jurídicos regulam a avaria grossa: o Código Comercial de 1850 (lei nacional com eficácia em todo o território) e as Regras de York-Antuérpia, criadas no âmbito internacional, para dar maior uniformização e segurança jurídica para o instituto, um instituto da lex maritima.

A definição de avaria tem alcance amplo conforme o art. 761 do Código Comercial de 1850:

Art. 761. Todas as despesas extraordinárias feitas a bem do navio ou da carga, conjunta ou separadamente, ou todos os danos acontecidos àquela ou a esta, desde o embarque até a sua volta e desembarque, são reputadas avarias.

Ademais, o mesmo código, em seu art. 763, diferencia as avarias grossas ou comuns, das avarias simples ou particulares, e estabelece que as aquelas são repartidas proporcionalmente entre navio, frete e carga, enquanto que estas (simples) são suportadas só pelo navio ou apenas pela coisa que sofreu o dano ou deu causa à despesa.

As avarias simples são as que ocorrem mais no cotidiano da navegação e, geralmente, envolver o armador e a carga, tal como em caso de extravio, dano ou furto.

Vale mencionar que a avaria grossa é instituto que possui cerca de três mil anos, sendo anterior mesmo à célebre Lei de Rhodes (século VIII a. C.), tal como mencionado em Marida Ltd. V. Oswal Steel (The Bijela) [1993] 1 Lloyd´s Rep 411, 420, segundo Hoffmann LJ.

O Digesto de Justiniano, por sua vez, publicado em 15 de dezembro de 533 (século VI d. C.), assim tratava o tema:

The Rhodian Law decrees that if in order to lighten a ship merchandise is thrown overboard, that which has been given for all shall be replaced by contribution of all.

A citação acima é uma das mais antigas definições de um princípio que tem regulado o transporte de mercadorias pelo mar. Cabe, ainda, mencionar a clássica definição desse instituto dada pelo juiz inglês Lawrence J no caso Birkley v. Presgrave (1801).

All loss which arise in consequence of extraordinary sacrifices made or expenses incurred from the preservation of the ship and cargo come within general average and must be borne proportionately by all those who are interested.

Como visto, o nosso Código Comercial de 1850 regulou o tema na esteira do que havia há séculos, embora a interpretação do citado instituto seja um tema que gera controvérsia e insegurança jurídica.

Desta forma, é possível o armador determinar a retenção da carga ao terminal portuário, até que o embarcador ou consignatário pague a contribuição por avaria grossa declarada.

Aspectos operacionais

Para a regulação da avaria grossa, dentre vários outros procedimentos, dois formulários serão enviados pelo armador (average bond e average guarantee), que precisam ser preenchidos com os dados do contêiner e do BL, assinados, carimbados e enviados juntos com uma cópia da invoice, ao average adjuster (regulador de avarias) nomeado.

O average bond e o documento non-separation agreement devem ser preenchidos normalmente pelo consignatário e o average guarantee pela seguradora, a fim de que as mercadorias sejam liberadas pelo terminal portuário, a pedido do armador.

A despesa de avaria grossa está coberta pelo seguro de transporte internacional, e a operação de liberação é feita pela seguradora do importador ou do NVOCC. Para aqueles sem seguro, é necessário fazer o depósito na conta indicada pelo armador.

O seguro de transporte internacional cobre as mercadorias transportadas contra os diversos riscos a que estão expostas, dentre as despesas de avaria grossa, e pode oferecer coberturas adicionais como guerra e greves.

Assim sendo, é devido pagamento da contribuição por avaria grossa quando há despesas extraordinárias feitas pelo armador numa viagem marítima, por exemplo, como aquelas devido ao alijamento de carga ou decorrentes de uma explosão com incêndio a bordo.

E o NVOCC? Deve contribuir?

Entendemos que sim, vez que é considerado embarcador perante o armador, porque contrata este. E qual o melhor momento para o pagamento?

Ressaltando-se que cada caso é um caso, a experiência mostra que, tão logo o NVOCC ou usuário seja informado pelo armador da declaração da avaria grossa, deve consultar o seu advogado, para que analise a legalidade da cobrança e, por sua vez, momento para o pagamento.

Agindo assim, os contribuintes poderão evitar pagamento de custas judiciais e de honorários de sucumbência devidos ao armador, caso efetue o pagamento após a citação em caso de ação judicial, o que geralmente ocorre, além do pagamento da avaria grossa, por força da sentença proferida.

E depois do pagamento da contribuição, o que fazer?

Por fim, após a contribuição, o NVOCC ou embarcador/destinatário, através da análise detalhada das particularidades dos elementos que causaram a avaria grossa, poderá demandar em juízo e cobrar em ação regressiva contra o armador o valor da contribuição efetuada.

Ressalto que é preciso fazer uma análise do risco da ação, inclusive sobre a ótica da análise econômica do direito e que todas as cautelas devem ser tomadas para evitar despesas desnecessárias, agravadas pela contribuição já feita, como custas judiciais e honorários de sucumbência de até vinte por cento do valor da causa.

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