Portogente entrevistou a doutoranda em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Rebeca Gomes de Oliveira Silva, integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Questão Ambiental e Serviço Social (Nepass). Ela tem 26 anos, vive em Recife, mas tem suas raízes no agreste pernambucano. Essa entrevista compõe o debate aberto pelo "WebSummit Porto & Cidade - Em busca de elos sustentáveis".
Rebeca Gomes de Oliveira Silva levou para a pesquisa científica a relação
comunidades e Suape. Crédito: Arquivo pessoal.
Sua pesquisa de mestrado “O Estado nunca se vê, mas aparece sempre a tirar-nos as nossas coisas: o papel do Estado no processo de expropriação das comunidades impactadas pelo Complexo de Suape”, foi defendida em fevereiro último. Ela identificou, com dados teóricos e empíricos, o seu contato com as comunidades e nos estudos dos documentos que o Complexo Industrial e Portuário de Suape, que o Estado atuou fortemente no processo de expropriação de terras para beneficiar o capital em detrimento das comunidades que viviam historicamente no território. As comunidades foram tratadas como empecilhos, atrasadas e com modos de vida inadequados ao “desenvolvimento”. “Foi um momento muito importante para mim, sentia e sinto que a minha dissertação tem muito a contribuir no debate, na resistência e no embate político das comunidades rurais e dos movimentos sociais que compõem a trincheira de combate ao avanço do capital sobre os territórios ocupados por essas comunidades”, avalia Rebeca.
Você pode nos contar da sua trajetória enquanto jovem mulher, acadêmica, profissional e as motivações da sua pesquisa?
Rebeca Gomes de Oliveira Silva - Minhas raízes são do agreste pernambucano, mais especificamente de Salgadinho, cidade em que nasceu e cresceu minha mãe. Meus pais não tiveram acesso ao ensino superior, pois desde cedo tiveram que trabalhar para garantir a subsistência, mas sempre tiveram a consciência de que estudar seria uma maneira de mudar a realidade de vida na qual estavam historicamente marcados. Então, desde pequena recebo o incentivo para os estudos.
Foi no ensino médio, através da influência de uma amiga que tinha acabado de entrar na UFPE, que decidi prestar vestibular para o curso de Serviço Social, onde passei no vestibular e continuei a estudar em uma instituição pública. Antes de iniciar minhas aulas, fiz uma seleção para o Programa Jovens Talentos Para Ciência, vinculado à Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], e fui aprovada, o que me levou a desde o primeiro período a estar inserida na iniciação científica. Passei a ser orientada pela professora Maria das Graças e Silva, vinculada ao Departamento de Serviço Social da UFPE, e à pesquisa sobre a questão ambiental e estudos sobre os impactos engendrados pelo Complexo Industrial e Portuário de Suape, localizado no litoral sul de Pernambuco.
Dissertação de mestrado verificou como se deu expropriação de territórios no entorno
do complexo industrial e portuário. Crédito: Repórter Brasil.
Participei de mais duas iniciações científicas, que analisavam medidas de mitigação adotadas pelo Estado diante dos impactos socioambientais ocasionados pela instalação e expansão da indústria naval no território onde hoje está o Complexo de Suape. Participei de um projeto de extensão nesse território, que contribuía para o fortalecimento político dos agricultores que residem no Engenho Ilha, localizado no Cabo de Santo Agostinho, atingido pelo Complexo de Suape, e que fazem parte da Associação de Pequenos Agricultores de Ponte dos Carvalhos. Através dessas experiências, foi possível ter contato com as comunidades e conhecer as violações cometidas por Suape para expropriar essas comunidades do território que historicamente ocupam, mas que passou a ser alvo do capital.
Você realizou pesquisas sobre desapropriação de território das comunidades locais também em Moçambique, como foi essa experiência? O que mais motivou para essa pesquisa?
O meu objetivo foi analisar quais foram os mecanismos e as estratégias, políticas e ideológicas, utilizadas pelo Estado para garantir as expropriações das comunidades rurais. A intenção desse estudo, não foi apenas acadêmica, mas, sobretudo, política, pois com o contato com as comunidades, tanto aqui no Brasil quanto em Moçambique, eu observava e ouvia que existia uma conivência do Estado com as atrocidades cometidas pela Empresa Suape, uma empresa pública, para retirar as comunidades do local e assim expandir o Complexo que tem sua origem na década de 1960. Entender o como o Estado atua nos possibilita criar ferramentas de resistência, de enfrentamento, possibilitaria construir meios coletivos de permanência no território.
Então, a partir dessas experiências, e da graduação sanduíche, financiada pela Capes, meu destino foi este país da África, que possibilitou um contato com as comunidades rurais que estavam sendo impactadas com a idealização e concretização do Programa de Cooperação Tripartida Para o Desenvolvimento da Savana Tropical em Moçambique (ProSavana). Escrevi meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), intitulado “Onde o dinheiro não é a comunidade, ele dissolve a comunidade: uma reflexão sobre a relação entre os grandes empreendimentos e as comunidades locais no Complexo de Suape e no ProSavana”.
No processo de escrita desse trabalho sentia que necessitava expor os acontecimentos com as comunidades rurais que viviam e ainda vivem no território onde hoje está o Complexo de Suape. Isso me levou ao mestrado, onde analisei os mecanismos e as estratégias, políticas e ideológicas, utilizadas pelo Estado para garantir as expropriações das comunidades rurais impactadas pela expansão do Complexo Industrial e Portuário de Suape (CIPS), durante os anos de 2003 a 2014, marcados pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). A dissertação, defendida em fevereiro de 2020, intitula-se “O Estado nunca se vê, mas aparece sempre a tirar-nos as nossas coisas: o papel do Estado no processo de expropriação das comunidades impactadas pelo Complexo de Suape”.
Em 2019 fui aprovada no doutorado, onde continuo a pesquisa sobre território onde hoje é Suape, verificando como as alterações das políticas de Estado, com o golpe de 2016, impactou a realidade pernambucana, a dinâmica de Suape, que vem liquidando as terras do território. Olhando para minha trajetória, esta discussão me toca e me instiga devido ao reconhecimento sobre a realidade da minha família, que é composta por agricultores que tiveram, em algum momento da sua existência, as suas condições de vida expropriadas. Tenho um comprometimento político, ético, com essas populações. E pretendo sempre contribuir para o fortalecimento dessas comunidades e a permanência delas em seus territórios.
Quais são as principais questões que você identificou no trabalho de campo em relação à população e o Porto de Suape? Que relações históricas existem entre porto e população?
No contato direto com as comunidades e nos estudos dos documentos foi possível identificar que a Empresa Suape, o Estado, agia visando garantir o território para o capital, as comunidades que viviam historicamente no território foram/são vistas como empecilhos, como atrasadas, seus modos de vida eram/são vistos como inadequados. O discurso de desenvolvimento propagado pelo Estado e pela mídia foi um dos principais instrumentos do Estado para garantir a efetivação do Complexo de Suape e expropriar as comunidades do território. Apesar de sua origem datar da década de 1960, período da ditadura, foi nos anos 2000, sobretudo de 2007 a 2014, que esse Complexo se expandiu. Essa expansão foi devido aos investimentos estatais através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), nos anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT). Com esses investimentos o Complexo de Suape se tornou o maior e mais dinâmico Complexo do Nordeste, atendendo a demanda da cadeia produtiva do petróleo. As comunidades rurais existentes no território viviam e vivem historicamente no território, muitos alegam ser descendentes dos escravos que trabalhavam nas Usinas de açúcar da região. Logo, essas comunidades possuem uma relação com o território antes mesmo da estruturação do Complexo. Todavia, com o apoio do Estado esse megaprojeto sobressaiu-se às comunidades, tornou-se mais importante que a sobrevivência dessas comunidades, que sua relação história com a terra, com o mar e com a comunidade.
Quais são os impactos humanos e ambientais que existem? Você identificou algum aspecto positivo para o território?
Os impactos engendrados por esse Complexo são inúmeros. Algumas autoras, como Mercedes Solá Perez, afirma que, desde a primeira conformação do Complexo, comunidades foram expropriadas para dar lugar ao empreendimento. Essa dinâmica foi se agravando com a expansão do Complexo através dos investimentos estatais. Estima-se que 3.000 das 6.800 famílias rurais que viviam no território foram expropriadas e essas expropriações se deram principalmente através da violência, de ameaças, da destruição de suas casas, de contaminação das águas, das plantações, do terror psicológico. As comunidades que foram realocadas foram para residir em casas que eram, e são, totalmente diferentes das casas que anteriormente viviam: casas pequenas, longe do mar, sem espaço para plantar e muito quentes. Desestruturou-se completamente a estrutura comunitária que fortalecia as comunidades. Apesar das promessas de indenizações, poucas as receberam e as famílias que receberam alegam ser irrisório, um valor muito pequeno que não garantiria a compra de outra casa. Houve também desmatamento do mangue, das matas e das restingas, várias partes do mar utilizadas para a pesca sofreram impactos devido à realização da dragagem, do aprofundamento do mar, o que resultou na perca dos recursos pesqueiros dos pescadores artesanais da região, além de contaminação dos rios e do mar, devido a trabalho com petróleo no complexo.
O impacto na economia local, como a pesca, também foi pesquisado. Crédito: Repórter Brasil.
Nos anos de expansão, pensava-se que o crescimento econômico na região seria para sempre, com geração de trabalho, de desenvolvimento social, apesar de os empregos serem em sua maioria ocupados por pessoas de outras regiões, ficando as comunidades locais com os empregos mais precarizados, devido à sua baixa escolaridade. Entretanto, a geração de emprego logo se esgotou, com o fim das obras de expansão do Complexo, como também devido à crise financeira internacional, intensificada no Brasil a partir dos anos 2000. Portanto, apesar das promessas de melhorias, de crescimento e desenvolvimento para todos, as comunidades rurais ficaram apenas com o ônus do dito desenvolvimento.
Quais são as principais conclusões da sua pesquisa?
A pesquisa conclui que as expropriações no território onde hoje é Suape, nos anos de 2003 a 2014, tiveram forte intervenção estatal principalmente por meios dos seguintes mecanismos: (a) investimentos e financiamentos através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do BNDES; (b) discurso ideológico institucional e midiático que anunciavam apenas os benefícios da expansão desse Complexo; e (c) reorganização territorial com vistas a tornar o território apto à acumulação do capital, utilizando, sobretudo, a violência.
O Estado atuou na inviabilização dos modos de vida tradicionais, prejudicando as comunidades que sobrevivem da agricultura e da pesca artesanal. Essas comunidades detinham parcialmente os meios essenciais para sua sobrevivência, como a terra, o que não as colocava fora da órbita do capital, mas com certa “autonomia” perante o mercado. Segundo a matéria realizada e publicada pelo Repórter Brasil em 2017, o Complexo de Suape e a Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará, são considerados antiexemplos devido às violações cometidas às comunidades durante as suas construções.
Vale destacar que tal movimento não ocorre exclusivamente em gestões de determinados grupos políticos, mas é própria da dinâmica de acumulação do capital que tem nas expropriações das comunidades rurais a garantia de sua expansão. A posse da terra e a autonomia relativa dessas comunidades rurais são os principais alvos de ataque do capital. Assim, desestruturam-se os meios que possibilitam o reconhecimento mutuo dessas comunidades, compreendendo isto, essas podem construir e avançar em formas coletivas de luta. Constatamos que o progresso é marcado pela violência, no qual o dito “desenvolvimento” só é realmente para o próprio capital. Desse modo, é urgente fortalecer a luta dos povos do campo, garantir a permanência dessas comunidades em seus territórios.