Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor e consultor editorial da revista Carta Capital
Nos peripatéticos acasos de minha biblioteca, topei com a coletânea de ensaios dos juristas alemães Franz Neumann e Otto Kirschmeier sobre o declínio da democracia de Weimar, a ascensão do nazismo e a transformação do sistema legal alemão.
Escritos entre 1933 e 1967 e reunidos por William E. Scheuerman, os ensaios talvez suscitem no leitor a tentação de concordar com a certeira observação atribuída a Mark Twain: “A história não se repete, mas rima”.
Franz Neumann, autor do clássico Behemoth, escreve no ensaio de abertura da coletânea: “Durante o boom dos anos 1924-1928 (domada a hiperinflação) foi enorme o desenvolvimento das políticas sociais na Alemanha. ‘A ilusão de segurança’ era perfeita.
O padrão de vida melhorou para todos, inclusive para os desempregados. Mas os verdadeiros donos do poder estavam dispostos a fazer concessões até certo ponto... Alcançado esse limite, os poderosos farão tudo para impedir as organizações dos trabalhadores de aumentar sua participação no Estado e de promover o progresso social.
Na Alemanha não era suficiente impedir o progresso social para manter o Estado ‘seguro’ para os proprietários da riqueza. Um movimento retrógrado era necessário. O poder do Estado deveria ser mobilizado para assegurar os privilégios dos mais ricos”.A Grande Depressão dos anos 30 e a política econômica de “ajustamento” do chanceler Brüning jogaram água no moinho do conservadorismo.
O professor Frederico Mazzuchelli, no livro Os Anos de Chumbo, ensina: “A Alemanha, com Brüning, procurou combater a recessão com a deflação. A austeridade impiedosa foi a marca de sua gestão. Sob o suposto de que os problemas da Alemanha seriam estritamente internos, ou de que em face das atribulações externas a Alemanha deveria ‘fazer a sua parte’ – vale dizer, readequar a estrutura interna de custos e preços –, Brüning, valendo-se do apoio do presidente Hindenburg, passou a governar por meio de decretos, inaugurando o ‘regime presidencialista’ dentro da parlamentarista República de Weimar”.
Mazzuchelli continua: “Não surpreende que as políticas deflacionárias implementadas por Brüning tenham aprofundado a própria recessão: em 1930, a produção industrial alemã caiu 13% e o desemprego vitimou mais de 3 milhões de trabalhadores, representando 15,3% da força de trabalho. Os preços, por seu turno, caíram perto de 4%, mas o pior, como se veria, ainda estava por vir”.
O enfraquecimento e a desmoralização do Legislativo e os poderes concedidos ao marechal Hindenburg em 1931 açularam o comportamento das burocracias não eleitas. Neumann prossegue na narrativa trágica: “O resultado desses desenvolvimentos foi o crescente poder de uma burocracia fora de controle que legislava e governava contra a democracia e o progresso social”.
“Não apenas os servidores e chefes da burocracia dos ministérios”, prossegue, “mas os juízes também eram um poder organizado na contramão do Estado democrático e social... Na Alemanha os juízes são formalmente independentes, mas na verdade eles são apenas burocratas que não dependem apenas de suas convicções pessoais, mas sim de sua ‘mente social’, de suas convicções políticas, religiosas e associações profissionais, ou seja, dos agrupamentos que odeiam o progresso social, os trabalhadores bem pagos e a emancipação dos subalternos.”
Voltemos a Mazzuchelli. “Em 1932, a economia alemã mergulhou em seu ponto mais baixo: basta registrar os 5,6 milhões de desempregados, que representavam mais de 30% da força de trabalho. Em maio, Brüning renunciou.
Em junho, a Conferência de Lausanne cancelou definitivamente as reparações... Nas eleições de julho, os nazistas alcançaram a espetacular cifra de 37,3% dos votos... As eleições de novembro apenas confirmaram que a Alemanha já havia feito sua escolha: o povo queria Hitler!”
A autobiografia do banqueiro de Hitler, Hjalmar Schacht, pode ser lida como o avesso dos escritos de Franz Neumann. Avesso não quer dizer o oposto, senão o “outro lado” do mesmo objeto escolhido para a investigação. O objeto em questão, constituído pelos dois autores-inimigos, é a crise dramática da sociedade burguesa e do Estado de Direito, engendrada pelo colapso do capitalismo nos anos 30.
O totalitarismo nasce das entranhas da sociedade capitalista, provocando a derrocada do Estado burguês-liberal, em que o exercício da soberania e do poder deve estar submetido ao constrangimento da lei impessoal e abstrata.
Como mostra o filme de Luchino Visconti, Os Deuses Malditos, o nazismo não realizou a estatização da economia e da sociedade, mas a privatização do Estado. Os interesses de grupos privados apoderam-se diretamente do Estado, suprimindo a sua independência formal em relação à sociedade civil.