Segunda, 25 Novembro 2024

Gilberto Giusepone é diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber

“O fascismo é o desprezo. Inversamente, toda forma de desprezo, se intervém na política, prepara ou instaura o fascismo” (Albert Camus)

Teve início a tramitação da PEC 241, que propõe o congelamento de gastos públicos, entre eles educação e saúde, por 20 anos. O projeto, que ganhou a alcunha de “PEC do fim do mundo”, obteve na votação em primeiro turno o apoio expressivo da base do governo, com praticamente o mesmo número de votos que assegurou a deposição da presidente Dilma Rousseff(366 e 367, respectivamente). O que tais números revelam é que estamos em presença de um claro projeto de “retomada do Estado” por forças conservadoras, do qual o impeachment foi apenas o primeiro ato.

Essas forças, que têm sido designadas como “Casa Grande”, estão se sentindo suficientemente fortes para deflagrar um programa de desmonte do tímido Estado de bem estar social que se construía no Brasil desde a Constituição de 1988.

A narrativa desse programa articula o velho mote conservador de combate à corrupção – uma das “justificativas” para o golpe de 1964 – com as novas premissas de um ajuste fiscal de fundo neoliberal, inspirado em estratégias de austeridade já aplicadas – e fracassadas – na União Europeia e nos Estados Unidos.

O que está ficando cada vez mais claro é que o esvaziamento do Estado de bem estar social não pode ocorrer sem que se esvazie igualmente o Estado democrático de Direito. Isso porque para que o primeiro prospere é necessária a negação de que políticas sociais são direitos e não simplesmente gastos.

A menção à “retomada do Estado” convida à reflexão: “retomar de quem?”; “para quem?” e, fundamentalmente, para quê?

Com a reação conservadora ao resultado da eleição de 2014, teve início um processo que visava devolver o protagonismo do grande capital no governo, acendendo-se os holofotes que superficialmente iluminam aspectos específicos para comparar instituições privadas a instituições públicas e, como resultado dessas comparações, sustentar a suposta superioridade da iniciativa privada em termos de eficiência e resultados.

A comparação entre equipamentos de saúde privados e públicos e entre escolas particulares e públicas são exemplos perfeitos da distorção comparativa que aproxima situações estruturalmente diferentes e compara performances individuais e institucionais.

O processo de retomada do Estado começou, portanto, pelo cerco às forças articuladoras de políticas sociais. Estas foram diluídas no ácido sulfúrico do preconceito que as associava aos “vícios de conduta” das populações pobres. O Bolsa Família é, talvez, o exemplo mais elucidativo do que estamos falando.

Os clamores pela mudança de paradigmas, com ênfase no mérito e na concorrência, são expressões de uma agenda que sistematicamente ocupou-se em retirar o Estado desse “lugarmais próximo aos de baixo”.

Mas esvaziar a democracia, implodir políticas sociais e aglutinar agentes políticos que vão desde os que defendem torturadores, os que fazem ataques ao Estado laico e aos direitos das minorias, até a apologia do Estado mínimo, são peças de um quebra cabeças que, uma vez montado, permite manter a pergunta: retomar o Estado de quem, “para quem”?
O deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP) demonstrou sem meias palavras o “sentido” que a nova ordem começa a festejar: “quem não pode pagar, não estuda”.

Para quem o processo se articulou? Para os que entendem que o Estado deve gastar o mínimo e abrir o máximo de espaço à iniciativa privada, de modo a fazer com que os serviços públicos também possam ser vendidos. É o que o prefeito eleito de São Paulo, João Dória, vem anunciando.

O que parece ser apenas uma racionalidade fiscal é, na verdade, uma interrupção abrupta na mobilidade social daqueles que estão usufruindo bens da cidadania (como o ensino superior, por exemplo) ao lado daqueles que podem pagar. Políticas sociais, já dizia Pierre Bourdieu, quebram o prestígio de algumas posições adquiridas antes apenas com a distância entre quem pode e quem não pode.

Temos então os componentes necessários para responder à questão: para quê?

Para desmontar a estrutura de direitos civis, trabalhistas e humanos que o patronato não quer mais pagar.

O trabalho “pesa” ao capital e este, em tempos de crise, não quer mais saber de brincadeiras e agora dispõe de quem esteja a seu serviço e com a caneta na mão, preparada para legislar.

O desmonte do financiamento da educação e da saúde passa pela indicação da impropriedade das políticas sociais e prossegue na estratégia de congelamento de gastos que torna o sucateamento dos serviços públicos praticamente irreversível.

Essa é uma lacuna preparada para ser preenchida por “parceiros empresariais” do Estado. Lembremos que esses já foram os interlocutores escolhidos para o início desastroso da tramitação da reforma do ensino médio.

Esses são os interlocutores que emergirão das cinzas da PEC 241 vendendo seus produtos e exibindo a força inescrupulosa dos que sempre responsabilizaram os pobres pela pobreza.
A PEC 241 é chamada de “PEC do fim do mundo” porque é, na realidade, a destruição amparada no desprezo. E, como disse Camus, em política o desprezo prepara ou instaura o fascismo.

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