Convidamos Adilson Luiz Gonçalves, professor universitário, pesquisador do Núcleo de Estudos Portuários, Marítimos e Territoriais (Nepomt) e do Núcleo Avançado da Associação para Colaboração entre Portos e Cidades (RETE), da Universidade Santa Cecília (Unisanta), a falar sobre a regionalização dos portos no Brasil. Segundo ele, governos e iniciativa privada, as universidades e institutos de pesquisa locais devem atuar no estudo e elaboração de propostas que levem em conta as especificidades de cada região portuária. “Também no âmbito da pesquisa científica, não faz sentido centralizar o estudo do sistema portuário nacional numa única instituição, por mais notória que seja sua expertise. Mais uma vez, num país com as dimensões continentais, a centralização não é a melhor alternativa. Holanda e Bélgica, mesmo sem países de pequena extensão territorial, têm seus principais portos geridos por instituições locais.
Portogente – É desejável e justificável implantar a Regionalização dos Portos, entendida como alterar a forma de escolher os executivos da alta direção dos portos, hoje centralizada no Governo Federal, e passar a ser feita alinhada com o desenvolvimento regional?
Adilson Luiz Gonçalves - Inicialmente, cabe lembrar que houve uma proposta de regionalização do Porto de Santos no final do segundo mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso, em favor do governo paulista. No entanto, essa proposta não evoluiu nos governos subsequentes que, apesar de manterem um programa de concessões e arrendamentos, mantiveram as Companhias Docas sob sua direção. Aliás, o processo de regionalização acima mencionado foi definitivamente prejudicado por ação judicial. Assim, embora o termo "regionalização" permaneça como conceito, o que se pretende, de fato, é a descentralização do sistema portuária nacional. Mas não basta descentralizar apenas passando de uma instância de governo para outra. Isso já existe no caso de portos públicos delegados a estados e municípios, desde a década de 1930. Por mais que possamos acreditar que um determinado governo tenha visão de Estado, apartidária, continuará o problema da sazonalidade da gestão pública: os quatro anos de mandato, ainda eventualmente prorrogáveis por mais quatro. E não adianta um governo fazer planejamentos estratégicos prevendo os próximos 20 ou 30 anos, se não houve continuidade em sua implantação, pois ainda persiste a prática de cada governo, dependendo de ideologias e intencionalidades e arranjos políticos nem sempre republicanos, de renegar e, até, demonizar governos anteriores. Essa "lógica" nefasta tem sido responsável por grande parte dos problemas de infraestrutura deficiente e instabilidade regulatória do país.
Na forma atual de gestão dos portos públicos, o preenchimento de cargos é feito por indicação político-partidária, sendo alguns tratados como "feudos". Com raras exceções, os cargos diretivos são ocupados por indivíduos sem qualificação ou afinidade com questões portuárias e de cadeia logística que tem nos portos um dos elos. E mesmo que os critérios técnicos sejam predominantes, os gestores estão sujeitos à volatilidade de contextos políticos. Esse é o cenário pós Lei 12.815/2013, que teve como sua pior definição a centralização do sistema portuário em Brasília, distante dos problemas e soluções dos portos públicos.
Ao contrário da legislação anterior, ela não assegura ganhos de produtividade nem de competitividade nas operações dos portos públicos. Pelo contrário, tem retardado decisões importantes no setor, agravadas pela instabilidade política que, num prazo de cerca de três anos, viu cinco ministros ocuparem a ex-Secretaria de Portos da Presidência da República, até sua extinção e incorporação ao Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil, sob forma de Essa nova "Lei dos Portos" tirou o caráter deliberativo dos Conselhos de Autoridade Portuária. No caso do Porto de Santos, o CAP vinha tendo participação efetiva, decisiva e positiva nas decisões locais, sendo referência nacional, modelo a ser seguido. Lembro de haver perguntado ao então presidente da Codesp, em 2013, a razão desse patente retrocesso, em relação ao Porto de Santos. A justificativa foi de que o objetivo da centralização era qual um "freio de arrumação", para nivelar os portos brasileiros. Nesse caso, como em muitos outros, o nivelamento foi para níveis mais baixos.
Na Lei 8.630/1993 os quatro blocos representativos que integram o CAP-Santos foram responsáveis por uma transição relativamente tranquila da CODESP da condição de operadora para Autoridade Portuária. Todas as instâncias de governo, operadores portuários, usuários do porto e trabalhadores estavam representados e vinham desempenhando seu papel com responsabilidade. Esse modelo resultou em significativa ampliação da capacidade do Porto de Santos, reduzindo as tensões sociais decorrentes da modernização das operações portuárias. Hoje, porém, essa representatividade tão bem sucedida foi reduzida à condição de mero órgão consultivo. Vinte anos passados dessa lei, a expectativa dos atores do setor portuário era de ajustes que criasse condições favoráveis para maior participação da iniciativa privada nos investimentos, fosse em portos públicos ou privados. Também era de estabilidade regulatória. Idem para a regionalização dos portos públicos.
No entanto, apesar de alguns aspectos positivos, a Lei 12.815 frustrou essas expectativas. Ela dinamizou a criação de Terminais de Uso Privado, ampliando suas possibilidades comerciais, porém, sem assegurar condições de competitividade para os portos públicos, patrimônios nacionais. No mais, faltaram recursos para investimentos na melhoria da cadeia logística brasileira, enquanto o BNDES financiava obras análogas no exterior.
A descentralização do sistema portuária nacional e a adoção de um modelo de profissional, com compromisso de investimentos e de cumprimento de metas e desejável, aliás, imprescindível. Esse é o padrão adotado nos portos que são referência mundial. Mas, qual seria o modelo, se não ideal, mais viável para essa transição? Talvez seja o da concessão, que vem apresentando bons resultados, sobretudo no Estado de São Paulo que, lembrando, é o estado mais desenvolvido economicamente e o mais industrializado do país. A definir prazos e outras cláusulas contratuais. No entanto, para tornar a concessão mais atrativa a empreendedores, há que se definir quais os procedimentos a serem adotados quanto aos atuais passivos e contenciosos trabalhistas e afins. A questão da PORTUS é um desses problemas. A concessão permitirá autonomia de gestão, mas baseada em metas; favoreceria a celebração de acordos comerciais e a captação de recursos e mercados com maior celeridade e objetividade, livre de ingerências político-partidárias, de nomeações sem qualificação profissional ou desnecessárias. Os Conselhos de Administração atuais permaneceriam, porém, com maior representatividade regional (estados e municípios diretamente afetados) e empresarial. No mais, não há nada, no contexto atual, que justifique - como já não justificava, antes -, num país de dimensões continentais com o Brasil, a centralização do sistema portuário. Os portos que referência do mundo ocidental nos dão os exemplos a serem seguidos, mas ainda querem "inventar a roda" por aqui... quadrada.
Portogente - Ao abordar a Regionalização dos Portos sob a ótica da produtividade, qual o melhor entendimento da sua modelagem: geográfica (seu entorno) ou logística (sua hinterlândia)?
Adilson - Embora existam inúmeras variáveis a serem consideradas, a modelagem deve ser primordialmente logística. Considerando um dos fatores mais influentes na eficiência dos porto, a acessibilidade, constata-se que ela ocorre por diferentes modais de transporte, regulados por diferentes níveis de governo. No caso do Porto de Santos, existem ferrovias interestaduais (concessões federais), e rodovias federais e estaduais. O trânsito e operações portuárias também afetam os sistemas viários urbanos. Assim, é necessário articular todos os atores envolvidos em infraestrutura e logística para assegurar maior eficiência no setor portuário. Isso inclui resolver problemas de silagem nas áreas produtoras; criar pátios reguladores de transporte intermediários; equilibrar as matriz de transportes nacional; expandir, tanto quanto possível, as áreas portuárias e retroportuárias; aproximar a produção industrial dos portos; agilizar licenciamentos, equilibrando os "três pilares" da sustentabilidade (econômica, ambiental e social); primar pela proatividade na relação porto-cidade; superar vaidades políticas e interesses menos nobres; e evitar judicializações entre outras iniciativas. Enfim, em lugar de maniqueísmos e interesses nem sempre claros, primar por uma visão holística, que inclua a sociedade.
Afinal, de nada adianta ter um porto moderno, superequipado, potencialmente eficiente e competitivo se houver "gargalos" logísticos, estradas deterioradas ou reflexos negativos em áreas urbanas. Para reduzir o famigerado "Custo Brasil" é preciso ter visão de estado e investimentos públicos e privados feitos de forma planejada, bem executada e mantida, e isenta, tanto quanto possível dos efeitos nefastos, lesa pátria, da corrupção. Para alcançar tal meta é indispensável a participação efetiva de entes regionais no processo de planejamento e gestão, seja nos Conselhos de Autoridade Portuária, seja nos Conselhos de Administração, os quais devem ser reformulados e aprimorados para atingir graus de excelência.
É importante lembrar, mais uma vez, que o Porto de Santos está localizado no estado mais industrializado do país. No entanto, opera majoritariamente granéis sólidos, boa parte deles oriundos/destinados a outros estados que compõem sua hinterlândia, cuja operação, na maioria dos casos, é afetada por fatores climáticos comuns na região. Enquanto isso, a participação de produtos de maior valor agregado nas exportações (máquinas, veículos, contêineres, cargas de projeto, etc.) é menos significativa. A crise econômica interna e o mercado internacional influem decisivamente nesse cenário. Mas o que temos, no caso do Porto de Santos é uma ociosidade de cerca de 50% nas operações de terminais de contêineres.
Ainda no caso do Porto de Santos, também é notável a distância das indústrias de produtos de alto valor agregado em relação às instalações portuárias. Essa distância, aliada às limitações físicas e operacionais de rodovias e ferrovias, aumenta o custo final dos produtos, prejudicando sua competitividade comercial. A Região Metropolitana da Baixada Santista dispõe de áreas para esse tipo de atividade, embora sejam necessários investimentos na infraestrutura de transportes, inclusive a implantação de hidrovias. E existem dispositivos que possibilitam essa aproximação, com as Zonas de Processamento de Exportação, que pressupõem redução de impostos de importação e IPI que, associados a incentivos municipais e estaduais, visam aumentar as exportações brasileiras, com ênfase em produtos de alta tecnologia e reduzido impacto ambiental. Uma vez mais, os melhores portos do mundo nos dão esse exemplo. Nessa condição, os portos têm potencial para gerar milhares de empregos, contribuindo para o equacionamento de questões sociais, propiciando melhoria da qualidade de vida.
Portogente - Na Regionalização dos Portos, a sua organização deve prever nítida distinção entre a direção e a gestão do Porto?
Adilson - Já tivemos Plano Nacional de Logística de Transportes, Plano Nacional de Logística Portuária, Plano Nacional de Logística Integrada... Conclusão, planeja-se demais, mas executa-se de menos, por todos os motivos já mencionados. Cabe ao Governo Federal planejar, regular e definir metas para o sistema portuária nacional, até porque o Orçamento da União depende disso. O que não pode haver é limitação do potencial de desenvolvimento dos portos brasileiros. O Governo Federal também deve zelar pela estabilidade regulatória e apoiar projetos bem elaborados e sustentáveis, seja pelo financiamento direto ou pela criação de condições atrativas para investimentos internacionais.
Uma vez criadas essas condições basilares, o Governo Federal manterá a condição de "land lord", cobrará resultados previstos nos contratos de concessão, caso esse seja o modelo adotado. Os estados e municípios pertinentes também atuarão diretamente no processo, dentro de suas atribuições constitucionais, e os portos, atualmente ainda vistos como geradores de conflitos na relação porto-cidade, poderão conviver harmoniosamente, tanto quanto possível, sempre aprimorando, com as comunidades que o circundam, gerando empregos, cuidando do meio ambiente, mitigando ou compensando impactos inerentes às suas atividades; e gerando prosperidade econômica para o país.
Em sendo adotado o modelo de concessão, a participação do poder público, em todos os níveis, também será indispensável na melhoria e ampliação das vias de acesso e em todos os demais elos da cadeia logística, direta ou indiretamente. Às concessionárias caberá a gestão, planejamento e expansão das atividades portuárias em sinergia com os governos, alinhada com o planejamento estratégico nacional, mas com autonomia e incentivo para superar e diversificar suas metas, sempre tendo como objetivo a desenvolvimento e a prosperidade do Brasil.