Osvaldo Agripino
Advogado (UERJ, 1991) e Professor do Mestrado e Doutorado em Ciência Jurídica da Univali (Capes 6)
Temos observado vários problemas que envolvem afretadores de navios que operam em portos brasileiros e no Exterior, pelos mais diversos motivos, o que tem suscitado o pagamento de demurrage. A questão que colocam é: “Eu já paguei, mas não é justo, a culpa não foi minha. Não aguento mais ficar com esse prejuízo, posso processar fulano?” E nós respondemos: “Depende, é preciso analisar o caso”.
Segundo a Agência de Notícias do Paraná (06/02/2020), “os gastos com sobre-estadia na importação dos fertilizantes pelos portos do Paraná foram 43% menor em 2019. Os dados foram divulgados nesta quarta-feira pelo Sindicato da Indústria de Adubos e Corretivos Agrícolas no Estado do Paraná (Sindiadubos). No ano, o setor economizou US$ 20,39 milhões.” Economizou? Como assim? Quem paga essa conta?
A demurrage de navio é fenômeno corrente há muitos séculos. A primeira menção à provisão equiparável consta do chamado Direito Marítimo Ródio, compilação bizantina do século VII d.C. de normas envolvendo transporte por navio formuladas séculos antes na ilha de Rodes, no Mar Egeu. Nessa, tem-se estabelecido um período de dez dias “de graça” a partir do prazo originalmente firmado na carta-partida para carga ou descarga, lapso temporal no qual o afretador (charterer) estava obrigado pelas despesas com a manutenção da tripulação.
Apesar dessa origem costumeira, a matéria – hoje já consolidada em códigos e leis esparsas na maioria dos países – não encontra tratamento doméstico uniforme. Por exemplo, enquanto na Inglaterra e nos Estados Unidos a demurrage de navio é considerada a liquidação prévia dos danos (liquidated damages) provenientes da quebra do contrato pela operação fora do prazo acordado, outros países perfilam entendimento muito distinto, como é o caso da França e do Canadá, onde tal instituto é encarado como um suplemento ao frete (supplément du fret).
No Brasil, a demurrage de navio encontra alguma regulamentação no Código Comercial, embora um tanto desatualizada, considerando que o mesmo data do século XIX, durante a regência do Imperador D. Pedro II, pela Lei nº 556, de 25 de junho de 1850.
Neste código, há certas disposições, como as de que a carta-partida (do inglês: charterparty, que resulta no contrato de afretamento, deve prever, dentre outras coisas, “o tempo da estadia e das sobre estadias ou demoras”, bem como quanto há de ser pago a título destas e a forma em que se dará tal pagamento (art. 567, nos 5 e 6).
Embora não exista qualquer posição da lei neste sentido, a corrente mais aceita pela doutrina e jurisprudência brasileira é a de que a demurrage de navio constituiria uma liquidação prévia de danos.
Todavia, não é completamente absurdo entender tal montante como uma extensão do frete acertado pelo contrato de fretamento (o nome pelo qual o instrumento denominado “carta-partida” no tempo da edição do Código Comercial é hoje conhecido). De fato, o afretador (charterer), ao adentrar nos ditos days of demurrage, de certa forma está estendendo a duração do negócio jurídico. Isto tudo com o prévio aceite do fretador (carrier), que se deu ao estipular a demurrage no referido contrato.
A demurrage de navio tem lugar, geralmente, em condições bem específicas, em que o tempo é fator crucial para o pleno gozo dos benefícios do contrato de transporte pelo transportador. É o caso, praticamente singular, do fretamento por viagem (voyage charter).
Na maioria dos contratos a demurrage de navio é estipulada contratualmente. Praticamente inexiste mais circunstância em que a mesma não é prevista de antemão entre as partes. A ideia de que esta incidiria por força dos “usos e costumes” é um tanto datada e descolada da realidade. E só é trazida à discussão quando não há previsibilidade.
Do mesmo modo, é comum a inserção no contrato de hipóteses em que a demurrage não deverá ser contabilizada. Todavia, apesar de todos os cuidados tomados no momento da negociação e elaboração do contrato de fretamento, ainda assim é possível ao afretador (isto é, quem contrata o serviço e paga o frete) estar exposto a uma cobrança de demurrage de navio. Como se sabe, vez por outra, a realidade invariavelmente supera a capacidade de antecipação das partes.
Uma greve de estivadores ou de fiscais da aduana, dentre outros fatores, podem contribuir, de alguma forma, para a obrigação do pagamento da demurrage. São infinitas as variáveis que podem interferir no regular desempenho das obrigações contratuais do afretador.
Ainda que muitas destas circunstâncias sejam previsíveis e até mesmo esperadas que ocorram, isto não significa que o fretador do navio admitirá a sua inclusão como exceções no contrato: muito pelo contrário, é de seu interesse não assumir esse risco, transferindo-o ao afretador, inclusive com a aplicação do once on demurrage, always on demurrage.
Por esta razão, em muitos casos o afretador se vê obrigado a pagar quantias vultuosas a título de demurrage, mesmo sem ter contribuído de forma alguma para o atraso na operação. O mesmo pode ser dito quanto aos seus seguradores que, muitas vezes, ficam a ver navios. Além disto, no mais das vezes, caso a questão seja judicializada, também não terá a seu favor a possibilidade de denunciar à lide o terceiro efetivamente responsável pelo prejuízo, tendo em vista que é comum o contrato de fretamento expressamente vedar tais “manobras” processuais.
Nestes casos, caberá ao afretador que se sentir prejudicado, após o pagamento da demurrage, efetuar a análise dos diversos fatores que possam ter contribuído para tal dano e tomar as medidas para fins de ressarcimento.
Para tanto, o afretador deverá resguardar-se de múltiplos cuidados, reunir provas do ocorrido desde o primeiro momento em que perceber que algo estiver errado, a fim de instruir adequadamente as medidas a serem tomadas.
O sucesso de sua empreitada dependerá sobremaneira da qualidade das provas, isto é, do quão convincente for o seu pleito. Além do mais, deverá estar atento ao prazo para a prescrição da sua pretensão. Todavia, esta regra não é necessariamente a única, devendo ser avaliado o caso concreto, pois existem disposições contratuais que podem alterar esta conjuntura, bem como a própria natureza do dano ou do autor deste.
Por estas razões, o afretador deve buscar o auxílio de assessoria jurídica especializada sempre que sentir que a cobrança de demurrage de navio for injusta. O profissional expert certamente saberá orientá-lo sobre o que poderá ser feito para contornar a situação, gerenciar tais riscos e, se for o caso, exigir a reparação do seu prejuízo. al, um direito não se pede, exige-se.