Sexta, 22 Novembro 2024

Gisele Pereira é historiadora, cientista da religião e professora

Celebrar é fazer memória. As celebrações nos conectam com um acontecimento significativo e transformador na história de alguém ou de um grupo social. As sociedades humanas são extremamente celebrantes, e esse é um componente fundamental das religiões.

Não celebramos apenas coisas alegres, como um nascimento, uma união, mas também a dor, o luto, o sofrimento. Um exemplo para nós cristãs/ãos é a celebração da Paixão de Cristo, seu martírio e crucificação.

Também celebramos a luta, fazendo memória a quem veio antes de nós e ajudou a traçar os caminhos que hoje percorremos.

Foi a luta das mulheres trabalhadoras na Rússia há 101 anos que deu origem a esta celebração, assim como sua consolidação em 1922 do Dia Internacional das Mulheres também foi resultante de luta. Neste dia (23 de fevereiro no calendário juliano em vigor na Rússia até então) em 1917, as trabalhadoras têxteis russas deflagraram uma greve contrariando as determinações da direção do próprio partido.

Com o lema “Pão, paz e terra” compassando suas marchas, a luta das mulheres foi o combustível necessário para inflamar uma sociedade que sofria com a miséria, a fome, longas jornadas e péssimas condições de trabalho, além da guerra que aprofundava a crise econômica e social. Acabaram por sensibilizar também muitos policiais, igualmente trabalhadores, que recusaram-se a executar a ordem para reprimi-las.

É neste terreno da luta que circunscreve nossa celebração do 8 de março. Fazemos esta delimitação antes que discursos hipócritas rompam o silêncio confortável frente às opressões cotidianas que sofremos, para equivocadamente parabenizar e homenagear as mulheres, atribuindo a nós características universalizantes que em nada correspondem à realidade ou contribuem para nossa dignidade. Um silenciamento da diversidade abrigada sob a mesma categoria do ser/ tornar-se mulher.

A omissão desta história de luta que nos precede e das motivações que nos impelem a continuá-la ainda hoje é uma maneira de calar a nossa voz, de fazer a nós e as opressões que sofremos invisíveis e inaudíveis.

Também hoje nos levantamos aqui contra as reformas trabalhista e da Previdência, que impõem às mulheres trabalhadoras um aumento de seu trabalho e achatamento de seu futuro.

Enfrentamos o silêncio engajado do poder público que faz avançar em todas as esferas o projeto neoliberal que expropria nossos corpos e territórios, sejam quilombolas, ribeirinhos, indígenas, periféricos, encarcerados...

Silenciosas e opressoras são as 7,5 horas semanais que as mulheres trabalham em média a mais que os homens, quadro praticamente inalterado nos últimos 20 anos. Como também silencioso e perverso é o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos que segue sendo entendido e cobrado como uma responsabilidade exclusiva das mulheres.

Opressoras são as imposições morais que condenam e restringem a diversidade sexual e a autonomia reprodutiva; que estabelece uma única conformação familiar como “natural”; que legitimam e justificam as violências e violações de direitos sofridas pelas mulheres.

Ensurdecedor é o silêncio que oprime vindo de uma Igreja institucional frente aos abusos contra mulheres e crianças cometidos por seus sacerdotes em todo o mundo. Assim como é igualmente cruel o silenciamento forçado das vítimas diante do poder religioso que acolhe e protege os abusadores que exercem o sacerdócio.

Este mesmo sacerdócio que é negado às mulheres contrariando o próprio movimento de libertação de Jesus Cristo que incluía mulheres e homens em um discipulado de iguais. O poder, a hierarquia, as doutrinas e dogmas construídos em seu nome, são desvios de Seu projeto e uma estratégia perversa de silenciar a capacidade das mulheres de liderarem e tomarem decisões sobre não apenas sua vida, mas também de sua comunidade religiosa e/ou política.

Uma Igreja que silencia diante da morte de mulheres decorrente do aborto inseguro, da violência misógina e do agravamento das condições materiais de subsistência de milhares de famílias, que em sua maioria são “chefiadas” por mulheres é uma Igreja que compactua com essas perversidades.

O conservadorismo moral e religioso que estende seus vigores contra os direitos das mulheres, população LGBT e população negra, reafirma a função perversa da trajetória de dominação e apagamento exercida pela igreja nos tempos de colonização e que perduram até os dias de hoje.

São incontáveis as desigualdades e opressões silenciadas que tornam o próprio silêncio opressor. Contra estes silêncios não nos calamos. Como bem disse Angela Davis na chamada para a greve internacional deste 8 de março: “Com todas essas frentes de guerra abertas contra nós, não nos acovardamos. Nós devolvemos com luta.” Essa é nossa maneira de celebrar, este é o nosso 8 de março.

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*Todo o conteúdo contido neste artigo é de responsabilidade de seu autor, não passa por filtros e não reflete necessariamente a posição editorial do Portogente.

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