Sexta, 22 Novembro 2024

Rafael da Silva Barbosa é economista e doutorando em Desenvolvimento Econômico da Unicamp

A atual proposta do governo para melhorar o acesso aos serviços de saúde da população por meio da criação do “Plano de Saúde Acessível” retoma, mais uma vez, o debate acerca do papel privado na política pública de saúde e dos possíveis impactos à qualidade de saúde da população. Segundo a Portaria nº 1.482 do gabinete do ministro do Ministério da Saúde e registrada por Ofício nº 60 do gabinete do secretário da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), em 18 de janeiro de 2017, a medida busca criar três novas modalidade de planos de saúde, a saber:

– Plano simplificado: cobertura para atenção primária, conforme rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), incluindo consultas nas especialidades previstas no Conselho Federal de Medicina;

– Plano ambulatorial + hospitalar: cobertura de toda atenção primária, atenção especializada, de média e alta complexidade. O paciente passaria obrigatoriamente por uma prévia avaliação realizada por médico da família ou da atenção primária, escolhido pelo beneficiário;

– Plano em regime misto de pagamento: oferece serviço por intermédio de contraprestação mensal para cobertura de serviços hospitalares, terapias de alta complexidade e medicina preventiva, bem como, quando necessário, atendimento ambulatorial (SAS, 2017, p. 2).

Por incrível que pareça, a justificativa formal do governo passa por uma ajuda irrestrita ao mercado de planos de saúde em detrimento ao direito universal à saúde. Em outras palavras, tanto o Oficio nº 60 quanto o Relatório Conjunto Descritivo do Grupo de Trabalho de Planos Acessíveis da Agência Nacional de Saúde indicam que o objetivo é salvar o mercado.

Dessa forma, ao ler os dois principais documentos balizadores do “Plano de Saúde Acessível”, fica claro que o objetivo central da política é a recuperação das seguradoras privadas que estão perdendo clientes em virtude do desaquecimento da economia. Ou seja, em primeiro lugar, busca-se blindar o mercado dos resultados econômicos do golpe parlamentar que ele mesmo patrocinou, isto porque o aumento do desemprego e a consequente queda da renda tem tido forte impacto nas carteiras das seguradoras e, principalmente, nas margens de lucro.

Como se vê, a redução da massa segurada eleva as despesas per capita das operadoras e impacta na precificação do produto, o que dificulta ainda mais o acesso da população à saúde suplementar. (SAS, 2017, p. 1)

Em última instância, os documentos não oferecem qualquer evidência científica sobre a tomada de decisão, os resultados esperados ficam apenas no plano teórico sem qualquer aplicação empírica. Assim, não há evidência científica que comprove os benefícios da política para a população que mais necessita dos serviços de saúde no país.

Chama atenção a ausência de parâmetro científico na justificativa do governo. E isto não se deve ao baixo de nível de informações sobre o assunto, muito ao contrário. Em termos mundiais, existe uma gama não desprezível de dados sobre o assunto, a última publicação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) denominada Tackling Wasteful Spending on Health (Enfrentamento ao Gasto Desperdiçado em Saúde) é rica em informações sobre sistemas baseados em seguro privado.

Dentre os diversos achados da publicação citada, uma em particular é elucidativa sobre a questão. No quadro geral, é comprovado que sistemas públicos (government schemes) mais homogêneos com baixo nível de segmentação são mais baratos e efetivos, tal como na Islândia, Suécia, Itália, Reino Unido, Austrália e Dinamarca. Ao passo que sistemas privados (voluntary prepayment schemes) com segmentação considerável são modelos mais caros e menos efetivos.

O caso estadunidense é o maior exemplo, o seu sistema é o mais caro do mundo e, quando comparado aos seus pares como Reino Unido, possui baixo nível de efetividade. Em termos macro, a mercantilização dos sistemas engendra altos custos com reduzido impacto na melhoria da qualidade de saúde da população.

Ademais, nacionalmente, existem consistentes informações e estudos sobre o tema. A mais recente de todas é a nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de nº 47: “O público e o privado no sistema de saúde: Uma apreciação do projeto de Plano de Saúde Acessível” . A publicação busca elucidar pontos não tratados de forma fidedigna na justificativa do governo. O primeiro deles é o aspecto econômico, em que já é comprovado que o coeficiente de elasticidade-preço da demanda para planos de saúde é baixo, ou seja, a redução dos preços dos planos de saúde não garante linearmente elevação da cobertura, sendo pouco provável para países com alto nível de desigualdade como o Brasil. E o segundo é o aspecto da gestão, em que quanto mais segmentado ou dual o sistema for, menos são as horas dedicadas ao setor público, visto que o profissional médico tende a dar cada vez mais prioridade as atividades mercantis.

“Estimativas mais robustas da elasticidade não são inferiores a -0,3 e nem superiores a -0,8” (Ipea, 2018, p.12)

Portanto, as evidências científicas produzidas sugerem que na maioria dos casos a expansão privada dos planos de saúde em sistemas públicos não gera aumento da acessibilidade, redução dos gastos e tampouco melhora o tempo de espera no sistema público.

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*Todo o conteúdo contido neste artigo é de responsabilidade de seu autor, não passa por filtros e não reflete necessariamente a posição editorial do Portogente.

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