Quinta, 18 Abril 2024

Num momento em que a incerteza, a desinformação e o fanatismo religioso, disputa com a racionalidade, a informação correta e as buscas científicas de várias áreas para compreender o novo coronavírus, nesta segunda e última parte, o professor Jean Segata aborda a importância das ciências e o papel das ciências humanas em revelar as desigualdades, ao tratar das especificidades que envolvem questões de classe e extratos sociais, estrutura racial e questões de gênero.

 Segata 1Jean Segata explica como as pesquisas contribuem para a sociedade. Créditos: Arquivo pessoal.

Primeira parte da entrevista
A pandemia do novo coronavírus, da desinformação, da fake news e da pós-verdade

“O vírus pode ser democrático e atacar todo mundo, mas vivemos numa democracia altamente calcada num sistema de desigualdade social. Dizer que atinge igualmente a ricos e pobres, mas não implica em dizer que os efeitos são iguais”. Exemplifica com as desigualdades de gênero, pois dados informam que as situações de violência doméstica aumentaram em grande parcela dos países que adotaram a quarentena.

Ele chama a atenção para a perspectiva de epidemias e outros acometimentos a partir da relação entre espécie humana e natureza, como as mudanças climáticas, agrotóxicos, emissão de monóxido de carbono e relação com os animais. “Não tem como não pensar que a doença é o capitalismo e a forma como ele converte o mundo num grande commodity.”

Epidemias causam dramas que acompanham a humanidade historicamente, marcando transformações importantes das populações e territórios. Que relações você observa entre a eclosão do novo coronavírus com as mudanças climáticas, agrotóxicos, emissões abusivas de CO2 na atmosfera, novas doenças em humanos e não-humanos, entre outras coisas?
Jean Segata - Realmente não consigo pensar o desenvolvimento desses desastres em escala global sem considerar o tipo de atividade nociva que temos praticado nesse mundo, especialmente a agressividade com a qual a gente tem interferido no mundo a partir da ascensão do capitalismo, que é a verdadeira doença, a verdadeira epidemia e mata muito mais do que qualquer vírus, do que qualquer coisa.

Quando a gente pensa na quantidade de agrotóxicos utilizados, no confinamento extensivo de animais para o consumo humano, a quantidade de resíduos, seja de gases, seja da quantidade de água utilizada, a quantidade de antibiótico que recebem.

Vários trabalhos comprovam que o resíduo de antibiótico que permanece na urina e nas fezes evapora, que respiramos e volta para nós pela chuva. Estamos corporificando doenças, expostos a essas quantidades excessivas de antibióticos e resíduos que provocam alterações na nossa suscetibilidade. Ao mesmo tempo, pensar nas indústrias da monocultura que interferem no equilíbrio de certos ambientes, que produzem o aquecimento de áreas do planeta, que fazem adoecer os trabalhadores desses espaços, que estão expostos ao químicos e a intempéries.

Não escapa nada, pois mesmo quando você pensa nos mercados que têm crescido, mesmo nos países de primeiro mundo, como o de alimentos orgânicos, estão baseados na força de trabalho escravizada, entra no mercado é um paraíso, sem agrotóxico, aditivos, antibióticos, uma boa linha de produtos veganos, sem química, mas quando você vai ver as procedências, você verá que a maior parte dessas frutas lindas e maravilhosas vem da América Central, da Califórnia, da América do Sul e que para colocar na mesa da classe média alta esse produto de boa qualidade virá de uma infraestrutura de trabalho precário. Há uma cadeia destrutiva que vai para todos os lados, e mesmo as oportunas são baseadas em desigualdades. Não tem como não pensar que a doença é o capitalismo e a forma como ele converte o mundo num grande commodity.

Quais as implicações antropológicas da construção social do medo "do outro" que vem sendo produzida nesse contexto de isolamento, afastamento social, quarentena, onde tocar e abraçar podem ser fatal?
Essa questão é muito interessante. Tenho um incômodo muito grande com essa conversão da saúde como um assunto de segurança, e isso tem se tornado uma tendência no universo das epidemias e das pandemias. É um discurso que mescla bactérias superpoderosas, resistentes aos antibióticos, com cepas de um vírus mortal que pode cruzar o planeta, com armas biológicas e terroristas que podem avançar fronteiras. Esse imaginário dos vírus e bactérias como inimigos, de certos animais vetores tratados como vilões, como o caso dos mosquitos, o próprio diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, quando declarou o nome da doença Covid-19, em 19 de fevereiro [último], falou nesses termos do vírus como um terrorista, o inimigo público número um. Esse tipo de declaração que cria um imaginário e converte a saúde num assunto de segurança, tem várias consequências.

250 Segata 2Primeiro, a coisa tecnocrática sobre essa esfera da segurança que nessa pegada militaresca é discutida de uma forma técnica e o conhecimento local das populações e o cuidado de si é pensado a partir de normas técnicas, a partir de procedimento de segurança.

O segundo ponto que me incomoda é que essa conversão da saúde num assunto de segurança não é nova. Vemos isso desde as primeiras campanhas da Fundação Rockfeller para o combate à febre amarela, em 1902, no contexto da independência de Cuba e na América Latina, entre 1915 e 1918, na construção do canal do Panamá, onde os Estados Unidos atuaram em primeira linha. Essas campanhas foram lideradas por um general, William Gorgas, que impôs políticas de saúde em caráter militar. É de lá que vem a ideia de campanha, da luta, de mapear o território, localizar o inimigo, antes que ele te pegue.

Essa pegada militaresca de que estamos num cenário de guerra e precisamos ter táticas de guerra para combater essa doença que é inimiga, isso cria uma aura de que esse vírus tem dono, criação, etnia, a racialização do vírus, o chinês é um inimigo, e potencialmente você cria essa acusação.

Vejo isso nas campanhas contra o aedes aegypti, pois há uma responsabilização individual, pois você pode contaminar a comunidade. E agora se você for no mercado e não lavar a mão você irá contaminar as pessoas. Então esse imaginário ele acaba saindo do mosquito como inimigo para aquele que facilita a proliferação como um inimigo.

Vizinhos brigam, há conflitos enormes, situações terríveis, traficante dono da rua dizendo que se encontrasse um mosquito era para avisar por que iria acabar com a pessoa.

Esse cenário militaresco pode potencializar outras situações de conflito, como racismo, xenofobia, individualização da culpa, que são cenários que não ajudam em nada. A gente precisaria pensar outras linguagens para tratar desses eventos de saúde, que não essa da segurança, que não essa institucionalização do medo como você diz, essa subjetivação do medo como uma política de Estado, como muitas vezes falou Didier Fassin [antropólogo e sociólogo francês], se referindo às táticas da política francesa, de que há inimigos e que estamos numa guerra. Na guerra mata-se com justificativas dadas pela situação da guerra, então eu acho que é uma gramática muito perigosa.

A ciência no mundo inteiro vem sofrendo duros ataques de legitimidade e investimento. No Brasil, em particular, durante a crise de enfrentamento à Covid-19, o Ministério da Educação (MEC) anunciou cortes record de investimentos e de bolsas de pesquisa na pós-graduação. Como você avalia isso, considerando que a pesquisa científica tem se mostrado uma aliada na busca da prevenção e cura ao novo coronavírus?
A partir do momento que você tem uma política estruturada e institucionalizada de pós-verdade e fake news dentro do governo, da Presidência da República, dentro do MEC, do MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações], você tem uma precarização da ciência, que se materializa com o profundo corte de bolsas que a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] fez com a Portaria 34, assim como o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] que não terá linha de investimento em ciências humanas, implica ir numa maré totalmente contrária à produção e conhecimento seguro em qualquer área. Desde pesquisa à cura do coronavírus, como a minha área em particular – a antropologia, de higienizar situações de pandemia pelo aniquilamento das ciências humanas, que situa os problemas de saúde.

Um exemplo disso: escutei inúmeras vezes em diversos canais de mídia, ainda que tenham se esforçado em trazer informações seguras, “a doença não tem passaporte, a doença é democrática, é para todo mundo, não adianta ter plano de saúde que todo mundo vai sofrer”. Todo mundo quem? O vírus pode ser democrático e atacar todo mundo, mas vivemos numa democracia altamente calcada num sistema de desigualdade social. Dizer que atinge igualmente a ricos e pobres, mas não implica em dizer que os efeitos são iguais. Nem tão igualmente assim pois os ricos têm casa para ficar, tem cômodo para se isolar, enquanto o trabalhador precisa ficar exposto ao vírus, à rua. E as desigualdades de gênero, quarentena com o agressor dentro de sua casa, mais em risco na exposição ao companheiro do que ao vírus, situações de violência doméstica, feminicídios. E onde não tem água e sabão para lavar as mãos?

Esse tipo de anúncio é calcado em ciências que se baseiam em universalidade. De um ponto de vista biológico, o vírus é o vírus, aparentemente ele é o mesmo em qualquer lugar e o princípio anatômico e fisiológico de corpos, seja de vírus seja de humanos funciona da mesma forma. Acontece que sociologicamente e antropologicamente falando, essas pessoas vivem contextos completamente distintos de exposição, de informação, de acesso a diagnóstico, de tratamento.

O papel das ciências humanas é mostrar esse lado não universal da mecânica de uma pandemia, mostrar as situações de desigualdade. Cortaram todas as bolsas no doutorado na antropologia na UFRGS, como complexificar a gravidade de uma pandemia mostrando os efeitos sociais, os efeitos situacionais, contextuais, que são próprios de um trabalho qualitativo nas ciências humanas? Isso é uma incógnita. Sem recursos de pesquisa, sucateamento, acabando com as ciências humanas? Assim só tende a piorar a situação, então é criminosa a tentativa de aniquilamento das ciências humanas em qualquer cenário, especialmente dentro de uma experiência como essa pandemia que estamos vivendo agora.

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